O Evangelho do 29º domingo do tempo comum (Mc 10,35-45) é provocador. Os discípulos de Jesus solicitam uma coisa totalmente contrária ao que Ele ensinou. Pedem para sentar-se nos lugares de honra no seu reino, à sua direita e à sua esquerda. Não compreenderam nem a pessoa, nem o modo de agir de Jesus. O evangelista Mateus, quando contou a mesma história, disse que foi a mãe deles quem pediu (Mt 20,20).
Devemos situar esse episódio no seu contexto. Mc 8,31-10,45 é a grande instrução de Jesus a caminho, balizada pelos três anúncios da Paixão. O Evangelho deste domingo é a continuação do terceiro anúncio da Paixão: estamos no fim da instrução, e parece que até os próximos de Jesus ainda não tinham compreendido. De fato, só aprenderão depois da morte e ressurreição de Jesus com a vinda do Espírito Santo. Por enquanto, em contraste com a incompreensão deles, eleva-se a grandeza da lição final: o dom da própria vida.
A Primeira Leitura (Is 53,10-11) prepara-nos para compreender melhor o Evangelho. É o quarto cântico do Servo Sofredor. No seu sofrimento, ele assumiu a culpa de muitos. A história da Igreja está cheia disso: os mártires que com seu sangue testemunharam o caminho da fraternidade. E ao lado desses mártires de sangue temos ainda os mártires do dia a dia, que não são poucos: pessoas que sacrificam sua juventude para cuidar de pais idosos, que sacrificam carreira lucrativa para se dedicar à educação dos pobres… São estes que santificam nosso mundo cruel.
O justo que dá sua vida pelos outros é chamado “servo”, porque serve. Jesus é a plena realização do “servo”. Aos apóstolos ambiciosos que desejam ter os primeiros lugares no Reino, Ele opõe seu próprio exemplo: “Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de todos. O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mc 10,45).
Este Evangelho coincide com o trecho da Carta aos Hebreus lido na segunda leitura (Hb 4,14-16). Aí o servo de Deus é chamado de sacerdote. Não no sentido do Antigo Testamento – pois aí os sacerdotes eram muitos e deviam ser descendentes de Aarão, mas no sentido de oferecer a Deus, por todos nós, a própria vida. Jesus é o único sacerdote conforme o Novo Testamento. Aqueles a quem chamamos de sacerdotes são, na realidade, ministros, servos do sacrifício exercido por Jesus. Eles ministram no altar o sacrifício de Jesus, exercendo o sacerdócio ministerial. E os fiéis unem-se ao dom da vida, Jesus exercendo na vida cotidiana o sacerdócio batismal do povo de Deus.
O poder no Reino de Deus consiste no servir. O amor só tem poder enquanto ele é doado e se coloca a serviço. Para atingir o coração e a Deus, interessa só isso. É preciso penetrar até o nível da liberdade da pessoa. Ninguém ama por constrangimento.
A liberdade surge quando alguém pode tomar ou não tomar determinada decisão. Frente ao pequeno, o homem revela o que tem no seu coração: bondade ou sede de poder. Jesus quis ser pequeno, para que os corações se revelassem, não tanto a Ele e Deus, que os conhece, mas a si mesmos, pois o maior desconhecido para mim é meu próprio coração.
Assumindo o caminho do paciente testemunho da verdade, divergente das conveniências da sociedade dominante, Jesus se tomou servo e fraco, sempre exposto e sem defesa. Tornou-se Cordeiro que tira os pecados do mundo (Is 53,7). O resultado só podia ser o que de fato aconteceu. Mas, muito mais do que no caso do justo de Is 53, Jesus tomou-se “pedra de toque” dos corações e da sociedade toda, com suas estruturas e tudo.
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ