Rezemos pelas vocações

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Com a conclusão do Ano Nacional do Laicato no ano passado, quando tivemos a oportunidade de refletir sobre a vocação batismal e, a partir desta, sobre a vida e a missão dos cristãos leigos e leigas na Igreja e no mundo, julguei oportuno proclamar este ano temático, em nossa Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, como Ano Vocacional Sacerdotal.

Este novo ano teve início no sábado que antecedeu o primeiro Domingo do Advento, por ocasião da Festa da Unidade Arquidiocesana 2018, e se concluirá na mesma Festa, em 2019. Esta ocasião, mais que um incentivo vocacional e de oração pelas vocações, é a continuação da resposta ao apelo de Jesus: “Pedi ao Senhor da Messe para que envie operários” (Mt 9,38)!

O Ano Vocacional Sacerdotal é a ocasião para refletirmos sobre a dinâmica do discernimento vocacional, promovendo a consciência e a vivência de que todos os membros da Igreja. Somos vocacionados à vida nova em Cristo (cf. Cl 3,3-4) pelo batismo e, ao mesmo tempo, promotores vocacionais para a vida cristã e sacerdotal (cf. Jo 13,34).

O Papa Francisco, na carta que nos foi dirigida por ocasião da abertura desse Ano Vocacional Sacerdotal, afirmou: “Ao inaugurar o Ano Vocacional da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, no dia 1º de dezembro, quero me unir ao clamor de cada um de vocês ao Senhor da Messe para que envie sempre operários para a missão nessa terra abençoada pelo Cristo Redentor.

Aliás, a sua estátua no alto do Corcovado, com seus braços abertos como que num grande abraço acolhedor, nos lembra que já a nossa vida é fruto de uma chamada de Deus: nos chamou à vida porque nos ama e tudo predispôs para que cada um de nós fosse único”.

Em Cristo e pelo batismo, todos nós cristãos somos chamados a uma mesma vocação: a santidade, através da plena comunhão de amor em Cristo. Todavia, no cuidado pela sua Igreja, que é seu Corpo Místico, Cristo Bom Pastor, dirige um particular chamado a alguns de seus membros para uma união mais íntima com Ele.

Como recordou o Papa Bento XVI, “em Cristo, Cabeça da Igreja, seu Corpo, todos os cristãos formam ‘uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular propriedade, a fim de que proclameis as excelências daquele que nos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa’ (1Pd 2,9).

No quadro deste chamamento universal, Cristo, Sumo Sacerdote, na sua solicitude pela Igreja, chama, portanto, em cada geração, diversas pessoas para cuidar do seu povo. Em particular, chama ao ministério sacerdotal homens que exerçam uma função paterna, cuja fonte reside na mesma paternidade de Deus (cf. Ef 3,14)”.[1]

Assim, através da nossa unidade na oração e no trabalho pelas vocações sacerdotais, esperamos que cada fiel se torne um animador vocacional, destemido e capaz de propor escolhas radicais; que nossas comunidades compreendam a importância e centralidade da Eucaristia na sua vida e a necessidade de Ministros que celebrem o Santo Sacrifício; que as famílias permitam o amadurecimento dos sinais de vocação em seus filhos, motivando-os a fazer um discernimento vocacional e apoiando/respeitando as suas decisões; que os bispos, padres e diáconos se mantenham firmes como os primeiros responsáveis pela animação vocacional e deem testemunho da alegria de servir a Deus nos irmãos e irmãs. A nossa proposta é que peçamos ao Senhor da Messe operários para a vinha do Senhor, de tal forma que de cada comunidade nasça uma nova vocação.

Sabemos que as sementes da vocação estão por toda parte. Às vezes eu me pergunto porque algumas comunidades estão estéreis de vocações há tantos anos e, ao lado, temos comunidades fecundas em santas e perseverantes vocações, muitas vezes numerosas. Peçamos ao Senhor da Messe que envie operários para a vinha do Senhor, mas trabalhemos também para recebê-los, a fim de que todas as nossas comunidades possam ver florescer esse chamado divino. É o que pedimos: de cada comunidade, uma nova vocação!

Sobre o tema:

Para ajudar em nossa reflexão e oração, a Coordenação de Pastoral Arquidiocesana escolheu um tema como norte espiritual: “A alegria de servir no sacerdócio ministerial”. Aqui se concentra, de um lado, a reflexão constante do Papa Francisco, que faz questão de sublinhar o tema da “alegria” em todos os documentos, e também em suas homilias e mensagens.

O Santo Padre tem se preocupado em anunciar uma vida cristã onde o querigma nos leva a ser testemunhas alegres de Jesus Cristo, Nosso Senhor. De fato, existem muitos motivos de tristeza e de desânimo em nosso tempo, porém, o cristão, por acreditar naquele que venceu a morte e está Ressuscitado e Vivo entre nós, se transforma, para o mundo, em uma testemunha alegre da Esperança que não decepciona e que supera toda tristeza: Jesus Cristo (cf. Rm 5,5).

Na vida sacerdotal, devemos dar destaque ao verbo “servir”, pois temos consciência de que o “poder sacerdotal” se revela no serviço aos irmãos (cf. Jo 15,12.14-15). O sacerdote é ordenado para ser, no mundo, a presença de Cristo Jesus que veio para servir e dar a vida por muitos (cf. Mt 20,28).

Essa consciência o coloca dentro da única alegria possível ao nosso ministério: a certeza de sermos agradáveis aos olhos de Deus por amarmos o nosso próximo como Ele nos amou, levando-o à santificação e à missão de testemunhar o Ressuscitado. Essa alegria é completamente distinta daquela alegria transitória e egoísta, típica do clericalismo que surge quando um batizado se sente mais digno de algo e de alguma prioridade em relação aos demais irmãos na fé somente pelo fato de estar servindo através de um ministério ordenado.

O lema escolhido, “Eis-me aqui, Senhor” (Is 6,8), nos recorda que, através da oração e dos nossos gestos concretos, precisamos motivar os jovens a não terem medo de responder com generosidade e disponibilidade ao serviço do Reino, doando suas vidas por causa do Evangelho. Essa resposta, que encontramos muitas vezes no chamado dos jovens a serem crismados, também se encontra de outras formas por toda a Escritura Sagrada.

Profetas, reis, patriarcas, apóstolos, discípulos, de uma forma ou de outra, se colocaram disponíveis para servir o Senhor naquilo que Ele lhes pedia. Nesse sentido, o lema de disponibilidade na resposta generosa do “eis-me aqui” faz com que a alegria de servir no sacerdócio ministerial se difunda.

Vocação: Chamado de Deus

O primeiro passo para que possamos suscitar vocações é estabelecer um diálogo profundo e sincero com Deus, através da oração. Como já afirmei anteriormente, o próprio Jesus nos diz: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao dono da messe que envie trabalhadores para a sua colheita!” (Mt 9,37-38).

Faz-se necessário transformar este convite do Senhor em testemunho público de fé e de obediência, promovendo celebrações nas paróquias, comunidades, santuários, casas religiosas, colégios, enfim, em todos os locais onde atuam nossas pastorais, movimentos e serviços. Junto com essas atividades, também o testemunho vocacional dos padres, diáconos e seminaristas será um belo sinal da ação de Deus em nossas histórias.

Assim, dos quatro cantos de nossa Arquidiocese, como num cenáculo, assíduos e concordes na oração, “com Maria, a Mãe de Jesus” (At 1,14), se eleve esta súplica ao céu, para pedir ao Pai aquilo que Cristo nos ordenou. Uma oração cheia de esperança, na expectativa confiante da ação do Espírito Santo.

Nestes momentos fortes de oração, Cristo garante que alcançaremos aquilo que pedimos: “Se dois de vós estiverem de acordo, na terra, sobre qualquer coisa que quiserem pedir, meu Pai que está nos céus o concederá. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles” (Mt 18,19-20).

 Pela prática da oração diária, na descoberta da Liturgia das Horas, praticando a “lectio divina” ou leitura orante da Bíblia (leitura, meditação, oração, contemplação, ação) e com o auxílio dos Sacramentos, a comunidade de fiéis é chamada a conhecer, amar e servir a Deus. Na verdade, nesse itinerário de crescimento no amor e no diálogo com o Senhor, que corresponde à vida de santidade, Deus faz o chamado particular para cada pessoa, isto é, uma vocação específica. É o modo próprio de cada um viver essa vida de amor e intimidade com Deus, que se irradia para os irmãos e pode assumir diferentes opções, na busca pela vocação que Deus escolheu para cada pessoa.

O Papa São João Paulo II esclarece que “Deus é sempre livre para chamar quem quer e quando quer, segundo a extraordinária riqueza da sua graça, mediante a bondade que teve para conosco em Cristo Jesus (Ef 2,7). Mas, ordinariamente, Ele chama por meio das nossas pessoas e das nossas palavras. Por conseguinte, não tenhais receio de chamar. Descei para o meio dos vossos jovens. Ide pessoalmente ao encontro deles e chamai. Os corações de muitos jovens, e de menos jovens também, estão predispostos para vos ouvir. Muitos deles buscam um objetivo pelo qual possam viver; encontram-se na expectativa de descobrir uma missão que tenha valor, para a ela consagrar a vida. E Cristo sintonizou-os com o seu e com o vosso apelo. Nós devemos chamar. O resto fá-lo-á o Senhor, que oferece a cada um o seu dom particular, consoante a graça que lhe foi concedida (cf. 1Cor 7,7; Rm 12,6)”.[2]

È Jesus quem faz o convite

 Mesmo em uma época conturbada, na qual cresce o individualismo e a mentalidade egocêntrica, que leva as pessoas a acreditarem que a vida vale pelo quanto se possa desfrutar das coisas, pessoas, momentos e oportunidades, o Senhor Deus continua chamando seus filhos para uma aliança de amor com Ele. Ainda existem muitos homens cujos corações estão sedentos por ouvir esse chamado e por viver a vida a partir dessa aliança. Cheio de admiração diante da obra de Deus, agradeço a Ele pelas vocações que surgem de todos os vicariatos de nossa Arquidiocese, porque são jovens e adultos animados e generosos que, com coragem e enfrentando muitas vezes dificuldades, dão o seu “sim” aberto e alegre ao Senhor que chama.

No entanto, precisamos reavivar em nossos corações a alegria de sermos a voz que serve à Palavra Eterna, colaborando com Nosso Senhor nessa missão. São João Paulo II se dirige aos jovens falando, exatamente, desse “sempre querer chamar” da parte de Deus e encorajando-os a nutrirem um coração interessado pela voz do Senhor: “A nossa vida é dom de Deus.

Devemos fazer com ela alguma coisa de bom. Há muitas maneiras para empregar bem a vida, aplicando-a ao serviço de ideais humanos e cristãos. Se eu hoje vos falo de consagração total a Deus no sacerdócio, […] é porque Cristo chama muitos de entre vós a esta extraordinária aventura. Ele tem necessidade, quer ter necessidade, das vossas pessoas, da vossa inteligência, das vossas energias, da vossa fé, do vosso amor e da vossa santidade.

Se é para o sacerdócio que Cristo vos chama, é porque Ele quer exercer o seu sacerdócio através da vossa consagração e missão sacerdotal; quer falar aos homens de hoje com a vossa voz; quer consagrar a Eucaristia e perdoar os pecados por meio de vós. Ele quer amar com o vosso coração; quer ajudar com as vossas mãos; e quer salvar com os vossos esforços. Pensai bem nisto. A resposta que muitos de vós podeis dar é dirigida pessoalmente a Cristo, que vos chama para estas coisas grandes”.[3]

 A vocação sacerdotal é o chamado feito por Deus a homens para que sigam o caminho de amor e intimidade com Ele por meio da oração, obediência e celibato. Na Igreja do Ocidente, esses sinais são fortes testemunhos de entrega total à graça de Deus e a buscar a Deus acima de tudo, entregando a própria vida. Trata-se de uma configuração com Cristo Sumo e Eterno Sacerdote, Pontífice entre nós e Deus, Cabeça do Corpo que é a Igreja (cf. Ef 5,23). Pela ordenação presbiteral, o homem é marcado para toda a eternidade com um selo, um caráter, que o torna ministro de Cristo e, em colaboração com os bispos, passa a ser um dispensador do poder da Graça que Ele conferiu aos seus apóstolos.

 Esse poder em plenitude é conferido aos sucessores dos apóstolos, que são os Bispos, escolhidos dentre os presbíteros para receberem a ordenação episcopal. Essa, portanto, não é apenas objeto de um discernimento vocacional pessoal propriamente dito, mas é fruto de um discernimento feito pela Igreja, guiada e iluminada pelo Espírito Santo, em relação ao futuro presbítero, o qual, uma vez eleito e respondendo afirmativamente às perguntas da Igreja, será ordenado padre. Os presbíteros são colaboradores dos Bispos e a estes prestam obediência e solicitude filial.

 É oportuno recordar que, apesar do chamado à vida sacerdotal ser o mesmo, há diferentes modos de viver a vocação sacerdotal.[4] Alguns, antes do sacerdócio, são chamados a se consagrarem a Deus como religiosos, professando os conselhos evangélicos de pobreza (dispondo a Deus seus bens externos), castidade (dispondo a Deus o seu corpo) e obediência (dispondo a Deus a sua alma, sua vontade).

Isso ocorre graças a um especial dom (carisma) conferido por Deus à pessoa, que a leva a viver uma vida de consagração unida a uma “família religiosa” com espiritualidade própria, através do ato público de profissão solene de votos. Por meio desse ato, esses vocacionados tornam-se vinculados a um instituto de vida consagrada ou a uma sociedade de vida apostólica e são chamados de religiosos.

Podem atuar diretamente na missão da Igreja pelo mundo, em institutos de vida ativa, ou indiretamente, por meio de uma vida reclusa de oração, como contemplativos em mosteiros. E há também, ainda hoje, quem seja chamado à vida eremítica sob o acompanhamento do bispo, a qual exige uma entrega mais radical a Deus e traz consigo uma forte exigência de oração pessoal, silêncio contemplativo, solidão e penitência.

O chamado de Deus: exemplo de Abraão

 Para falar um pouco mais sobre a vocação ao sacerdócio, vejamos a história do chamado de Abraão, nosso pai na fé. O primeiro “acontecimento vocacional” em sua vida foi aquele direto e imperativo chamado que Deus lhe fez para partir deixando tudo para atrás, quando ele ainda vivia em obediência ao seu pai Taré e se chamava Abrão: “E o Senhor disse a Abrão: ‘Parte para longe de tua pátria, de teus parentes e da casa de teu pai, e dirige-te ao país que eu te indicar. Pois farei de ti uma grande nação, hei de abençoar-te e engrandecer teu nome: sejas tu uma bênção!’” (Gn 12,1-2).

O Senhor Deus disse o que Abrão deveria fazer, e o que Ele, Deus, queria fazer na vida de Abrão. Porém, a fala foi sem maiores detalhes, sem particularidades e sem pedantismos. O que significa dizer que, por hora, bastava para Abrão saber apenas aquilo para tomar a sua decisão. No cumprimento da ordem divina, uma parte da ação caberia a Abrão, em todo o seu ônus (deixar todas as suas referências e seguranças pessoais) e a outra parte caberia a Deus, enquanto promessa (fazer dele pai de uma nação).

Entretanto, tudo o que seria realizado, desde a hora em que Deus falou até o cumprimento definitivo e total da promessa, aconteceria sob a regência da graça de Deus e sua bênção, ou seja, seria o agir de Deus e também o agir de Deus em Abrão. Como dirá o salmista: o falar de Deus é bendito e puro (cf. Sl 18,8; 17,3), e bendito se torna todo aquele que O escuta e coloca em prática a sua Palavra, como dirá o Senhor Jesus aos seus interlocutores (cf. Lc 11,28).

 Sabemos que a vocação é um chamado que Deus faz a seus filhos e filhas, um convite a configurar-se com Cristo Jesus, tornando-se n’Ele dom para todos os irmãos e irmãs. São João Paulo II nos dirá: “Na origem de todo caminho vocacional está o Emanuel, o Deus-conosco. Ele nos revela que não estamos construindo sozinhos a nossa vida, porque Deus caminha conosco em meio às nossas sucessivas vicissitudes e, se nós o quisermos, tece com cada um uma maravilhosa história de amor, única e irrepetível e, ao mesmo tempo, em harmonia com a humanidade e com o cosmo inteiro.

Descobrir a presença de Deus na própria história, não mais sentir-se órfão, mas estar certo de ter um Pai ao qual pode entregar-se completamente: essa é a grande virada que transforma o horizonte simplesmente humano e leva o homem a entender – como afirma a Gaudium et spes – que ele não pode ‘encontrar-se plenamente, a não ser no dom sincero de si’ (n. 24). Nessas palavras do Concílio Vaticano II, encerra-se o segredo da existência cristã e de toda autêntica realização humana”.[5]

A dinâmica de seguir o chamado vocacional que Deus faz não parte de uma vontade meramente humana, da pura racionalidade ou da tentativa de superar a inércia e dar uma oportunidade a si mesmo, como se fosse uma resposta para a afirmação: “eu preciso fazer algo da minha vida, vamos ver o que pode ser…”.  No testemunho de Abrão fica claro que Deus se dirige a cada um pelo nome, e tem uma proposta e um itinerário já definidos. Em outras palavras, não é apenas um chamado ao qual cada um corresponde do jeito que lhe pareça melhor e mais viável, dentro de suas próprias possibilidades.

Quem seria capaz de afirmar qual seria o melhor caminho a seguir? O próprio Abrão? Certamente não. Dentre todas as possibilidades imagináveis e não imagináveis ao homem, Aquele que lhe deu a vida e continua querendo a sua felicidade é o único capaz de apontar qual o caminho a seguir: “Quem sabe o que convém ao homem na sua vida, nestes poucos dias de sua existência vã, por mais que os prolongue como uma sombra?” (Ecl 6,12).

Escutar a voz de Deus

 Outro aspecto do chamado consiste na escuta: Abrão ouve a Deus, que lhe fala. Diante disso, podemos nos perguntar: “Eu escuto a Deus?”; “Ele já me falou?”. O chamado é reconhecido por aquele que faz uma verdadeira experiência com Deus. Ainda que não tenha clareza de como se dará o caminho, permanece na escuta para perceber os passos que deverão ser dados.

Note-se que, no primeiro momento, Deus ainda não revela a Abrão todo o projeto que tem para ele, nem as provações e desdobramentos daquele primeiro chamado. “Foi pela fé que Abraão, obedecendo ao chamado de Deus, partiu rumo ao país que lhe caberia em herança. Ele partiu de seu país sem saber para onde ia” (Hb 11,8). Na antiga tradição bíblica, escutar não se limita ao simples ato físico de ouvir o som da voz de alguém que fala conosco.

Trata-se de um acolhimento interior da Palavra daquele que fala, um acatamento com o coração, tornando agora sua aquela palavra ouvida. No caso de Abrão, seu ato de escuta é um ato de obediência a Deus, o que significaria tomar uma decisão sobre a sua própria história de vida! Mas por que partir? Como seria? Abrão nem sequer pensava ou planejava tal coisa para si.

Contudo, tomando agora essa decisão, a sua vida e o seu futuro ficariam completamente comprometidos e entregues nas mãos de Deus. O próprio Deus seria de agora em diante sua única garantia. Não haveria outra segurança sobre a qual se apoiar a não ser o fato de que Deus, que é fiel, assim o quis e Abrão confiou nele e partiu (cf. Dt 7,9; 1Ts 5,24).

Ensina-nos o Papa Francisco: “Na raiz de cada vocação cristã, há este movimento fundamental da experiência de fé: crer significa deixar-se a si mesmo, sair da comodidade e rigidez do próprio eu para centrar a nossa vida em Jesus Cristo; abandonar como Abraão a própria terra pondo-se confiadamente a caminho, sabendo que Deus indicará a estrada para a nova terra. Esta ‘saída’ não deve ser entendida como um desprezo da própria vida, do próprio sentir, da própria humanidade; pelo contrário, quem se põe a caminho no seguimento de Cristo encontra a vida em abundância, colocando tudo de si à disposição de Deus e do seu Reino.

Como diz Jesus, ‘todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá por herança a vida eterna’ (Mt 19, 29). Tudo isto tem a sua raiz mais profunda no amor. De fato, a vocação cristã é, antes de mais nada, uma chamada de amor que atrai e reenvia para além de si mesmo, descentraliza a pessoa, provoca um ‘êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus’ (Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est, 6)”.[6]

Longe de ser um ato irracional, o ato de fé se fundamenta no fato de que, se Deus existe e me chama a algo, segui-Lo é o mais apropriado a fazer, pois Ele não pode se enganar e nem enganar alguém. Pôr-se à escuta, por meio de uma dedicação generosa à oração mental e à leitura das Sagradas Escrituras, é pressuposto indispensável para o discernimento e uma resposta positiva que coloque a pessoa em movimento. Os sinais que o Senhor nos dá variam para cada pessoa e o importante é o discernimento e a abertura para acolher o chamado. Aqui se percebe, também, a importância do Diretor Espiritual.

O discernimento vocacional, em um primeiro momento, é a busca por saber qual é o modo particular de estado de vida que Deus escolheu para uma pessoa desde toda a eternidade e que, portanto, será o seu caminho de plenitude. O discernimento exige um processo de autoconhecimento – momentos de silêncio, de reflexão e de oração – preferencialmente acompanhado por um bom diretor espiritual que ajudará o vocacionado a amadurecer no diálogo com o Senhor.[7]

Em outras palavras, trata-se de um processo que ajude o jovem a colocar as perguntas essenciais à sua vida cristã e a buscar respostas que iluminem o seu modo de viver para se tornar mais semelhante ao modo de vida de Jesus. Isso o levará diretamente ao encontro de sua identidade como cristão, como batizado. Logo, a reflexão e o discernimento acerca da própria vocação cristã são válidos para todos aqueles que, sinceramente, se perguntam diante de Deus sobre sua vocação.

A partir desse passo, e com o contínuo crescimento na prática cristã de amor ao próximo e de obediência ao Pai, a exemplo de Jesus, é que o Senhor Deus vai revelar o chamado específico à vocação sacerdotal que Ele tenha reservado para alguns rapazes. Tudo começa e se desenvolve a partir do compromisso verdadeiro e sincero de nossa vocação batismal com a vida nova em Cristo.

O processo de discernimento vocacional para o sacerdócio ministerial pode durar alguns anos e deve ser vivido com diligência.[8] O fato de ser Deus a origem do chamado e, portanto, Aquele a quem também compete a iniciativa de indicar o caminho, não exclui a necessidade de a pessoa ser responsável e interessada em buscar ouvi-Lo. “De manhã lança a tua semente e até a tarde não descanse a tua mão, pois não sabes se isto ou aquilo dará resultado, ou se ambos serão igualmente bons” (Ecl. 11,6).

Para auxiliar nesse tempo de discernimento é necessário buscar a ajuda de grupos vocacionais e pessoas experimentadas em suas vocações, como testemunho de vida ministerial. Através desses e de outros diversos meios e sinais, o vocacionado vai adquirindo uma certeza moral de qual é a direção a seguir.

A história de Abraão ilustra como, após a escuta de Deus, Ele comunica o caminho da vocação por diversos meios e sinais, que vão dando ao vocacionado uma certeza moral de qual é a direção a seguir. Resta, agora, a busca pela concretização desse caminho. Não ignoremos, queridos irmãos, que para um homem tomar uma decisão, como a tomada por Abrão, ele precisa ter ao coração algumas importantes virtudes: humildade, simplicidade, mansidão e docilidade de espírito, paciência e coragem.

Aproveito esse tema para dirigir uma palavra mais direta e formativa aos jovens que sentem no coração um chamado ao serviço do Senhor, recordando o livro do Eclesiástico: “Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, afim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça (…).

Aceita tudo o que acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência. Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; (…) orienta bem o teu caminho e espera nele (…) esperai em sua misericórdia, não vos afasteis dele, para que não caiais; (…) esperai nele; sua misericórdia será fonte de alegria (…) amai-o, e vossos corações se encherão de luz” (Eclo 2,1-10). Eis aqui a estrada que prepara a alma com as mesmas virtudes que estavam presentes em Abrão para poder escutar e responder à voz do Senhor. Sem essas virtudes ao coração, a nossa tendência é resistir arduamente na hora de se deixar conduzir por Deus.

Não se improvisam virtudes, elas precisão ser cultivadas com os bons atos humanos vividos na fé sob a ação da graça de Deus. Deus, que resiste aos orgulhosos e que detesta os soberbos (cf. Tg 4,6 e Sl 118,21), ama os homens de coração humilde e cuida de seus passos (cf. Sl 146,6; 118,105). Como foi acenado, no primeiro momento, Deus não revelou a Abrão todo o projeto que tinha para ele, nem as provações e desdobramentos que viriam daquele primeiro chamado.

Por isso, como recordará a Carta aos Hebreus, dentre todas as virtudes humanas presentes em Abrão, sobressaiu-se e brilhou como estrela polar aquela virtude teologal fundamental ao coração do homem que ama a Deus: a fé. “Foi pela fé que Abraão, obedecendo ao chamado de Deus, partiu rumo ao país que lhe caberia em herança. Ele partiu de seu país sem saber para onde ia” (Hb 11,8).

Um chamado à paterna fecundidade!

 Quero começar esse tema observando um importante fato: mesmo Abraão não sabendo os detalhes do trajeto, o local onde iria terminar sua jornada e os incidentes que estariam presentes no caminho, Deus já lhe havia dado um direcionamento fundamental em sua promessa – ser pai de uma grande nação: uma vocação à fecundidade.

Esse chamado à fecundidade é um aspecto comum que Deus renova em toda vocação específica. Sua universalidade se verifica no próprio relato do Gênesis sobre a criação do homem e da mulher: “Deus os abençoou dizendo: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos…’” (Gn 1,28).

O versículo bíblico trata de um chamado à vida matrimonial; entretanto, uma vez que também fala da missão de gerar vida e uma posteridade santa, é possível aplicá-lo às vocações sacerdotais, pois recorda ao sacerdote celibatário que o seu amor deve manifestar a sua paternidade no sentido espiritual, conduzindo os homens no caminho da santidade.

A fecundidade espiritual gera a vida sobrenatural por meio dos sacramentos e dos cuidados com as realidades espirituais. Isso porque, com efeito, “o discípulo não recebe o dom do amor de Deus para sua consolação privada; não é chamado a ocupar-se de si mesmo nem a cuidar dos interesses de uma empresa; simplesmente é tocado e transformado pela alegria de se sentir amado por Deus e não pode guardar esta experiência apenas para si mesmo: ‘a alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade dos discípulos, é uma alegria missionária’ (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 21)”.[9] Por isso, uma vocação não se torna estéril e egoísta quando vivida em perfeita unidade com o Senhor e a serviço dos irmãos e irmãs.

Aberto à fecundidade do Espírito Santo, o sacerdote celibatário doa-se a ponto de perder a vida pelos seus “filhos na fé”, vivendo Cristo (cf. Fl 1,21), não reservando nada de si mesmo para si, renunciando às prerrogativas de sua própria vontade para fazer sua toda aquela Vontade do Pai em Cristo.

Desse modo, o sacerdote passa a ser um dom de amor fecundo, como nos ensina São João Paulo II, na Pastores Dabo Vobis: “No celibato, a castidade mantém o seu significado originário, o de uma sexualidade humana vivida como autêntica manifestação e precioso serviço ao amor de comunhão e de entrega interpessoal.

Este mesmo significado subsiste plenamente na virgindade, que realiza, mesmo na renúncia ao matrimônio, o ‘significado nupcial’ do corpo mediante uma comunhão e uma entrega pessoal a Jesus Cristo e à Igreja, que prefiguram e antecipam a comunhão e entrega perfeita e definitiva na vida eterna”.[10]

Portanto, a fecundidade paternal deve ser vivida a exemplo do próprio Cristo que em nada resistiu a Vontade do Pai, fazendo-se pão de Vida Eterna para saciar a fome de vida presente no coração dos homens, transmitindo-lhes, através do dom da própria vida, Vida em abundância.

Em Abrão, encontramos uma atitude com que muitas vezes nos deparamos ao longo do caminho vocacional e à qual precisamos estar atentos. Trata-se da tentação de querer adaptar as circunstâncias do dia a dia conforme nossa própria iniciativa, e basear-se em raciocínios próprios para cumprir a promessa de Deus. Vejamos a situação do grande Patriarca, que, mesmo tendo recebido o chamado para partir e a promessa de fecundidade, ainda não tinha filhos, sendo sua esposa, Sarai, estéril.

Diante da impossibilidade de acontecer uma gravidez e, ao mesmo tempo, preocupados em realizar a promessa da numerosa descendência feita por Deus, Sarai propõe que Abrão gere um filho com a escrava Agar, para que, por meio desta, tivessem uma descendência – e ele consente. Mas não era esse tipo de confiança que Deus esperava dele; os planos de Deus eram outros: “Não será este o teu herdeiro, mas sim um que há de sair de tuas entranhas” (Gn 15,4). E não somente promete uma posteridade com sua verdadeira esposa, mas uma posteridade extremamente numerosa: “‘Olha para o céu e conta as estrelas, se puderes’. E acrescentou: ‘Assim será a tua posteridade’” (Gn 15,5. E, mais uma vez, Abrão confia porque tem fé, tem a certeza das coisas que ainda não vê (cf. Hb 11,1): “Creu Abrão no Senhor, e lhe foi imputado como justiça”(Gn 15,6).

 A tentativa de Sarai e Abrão de anteciparem o cumprimento da promessa da descendência, e a atitude de Deus em manter o seu desígnio por um caminho que aparentemente não seria possível para o casal, deve nos fazer lembrar que “não vos compete conhecer os tempos e os momentos que o Pai fixou com sua própria autoridade” (At 1,7). “Como são impenetráveis os seus juízos e incompreensíveis os seus caminhos! Quem pode conhecer a mente do Senhor, ou ser seu conselheiro?” (Rm 11,33-34). É grande demais o mistério da vontade de Deus para que possa ser por nós previsto e calculado.

E sua onipotência é a garantia de que Ele pode realizar o que promete. Se Ele chama alguém para uma determinada vocação, também quer instruí-lo e prepará-lo, porque Ele não chama sem que haja um projeto previsto. Por isso, é indispensável àqueles que querem seguir a própria vocação ter uma fé sólida e um coração virtuoso que se deixe guiar pelos sinais e ensinamentos confiados pelo Senhor à sua Igreja, como portadora da Sua voz em favor dos batizados.

Ao nos chamar, Deus nos enriquece com diversos “talentos” para que os multipliquemos, e possamos entregá-los pelo bem dos filhos e filhas espirituais que Ele nos confia (cf. Mt 25,14-30; Lc 19,12-27). Contudo, a multiplicação dos “talentos pessoais” não pode ser dissociada da geração de vida, na comunhão com Deus, sob a ótica do amor a Ele e ao próximo, pois os frutos do trabalho só fazem sentido se proporcionam um verdadeiro compromisso de vida interior.

Assim nos ensina São João Paulo II: “O Espírito Santo e a Igreja, sua mística Esposa, repetem também aos homens e às mulheres do nosso tempo o seu ‘Vem!’. Vem ao encontro do Verbo Encarnado, que quer tornar-te partícipe de sua própria vida! Vem acolher o chamado de Deus, vencendo titubeios e adiamentos! Vem e descobre a história de amor que Deus teceu com a humanidade: Ele quer realizá-la também contigo. Vem, e saboreia a alegria do perdão acolhido e dado.

O muro de separação que existia entre Deus e o homem, e entre os mesmos seres humanos, foi demolido. As culpas foram perdoadas, o banquete da vida está preparado para todos. Felizes aqueles que, atraídos pela força da Palavra, e plasmados pelos Sacramentos, pronunciam o seu ‘Estou aqui!’. Eles se encaminham pela estrada da total e radical pertença a Deus, fortes da esperança que não decepciona, ‘porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi dado’ (Rm 5,5).”[11]

Deus comunica a sua vontade

 Muitas vezes Deus se utiliza de intermediários para comunicar sua vontade a uma pessoa. Santa Teresa de Jesus, grande carmelita mística e doutora da Igreja, afirma que os convites e vozes do Senhor para aqueles que, vivendo em meio ao mundo, decidem se aproximar dele por meio de uma vida de oração séria, não são fenômenos místicos extraordinários, mas “são palavras que se ouvem de gente boa, ou sermões, ou leituras de bons livros e outras coisas que nos são ditas em determinadas ocasiões, das quais Deus se serve para nos chamar. Ou ainda doenças, sofrimentos, e também certas verdades que ele nos ensina nos momentos passados em oração”.[12]

Aquele que se põe à escuta de Deus, buscando descobrir Sua vontade, tem de considerar que Sua voz pode vir abafada por ruídos vindos do mundo, que inculcam valores e desejos muitas vezes opostos à vontade divina, como também podem vir de ruídos do próprio interior da pessoa; seus gostos, inclinações, desejos, concupiscência, que se opõem a inspiração divina, quase sempre gratificando em satisfações e conforto os próprios interesses pessoais.[13]

 Recuperando o exemplo de Abrão, Deus mais uma vez lhe falou, aos 99 anos, ou seja, treze anos após o nascimento de seu filho com a escrava Agar. Depois desse longo percurso, Deus não só reafirma a vocação à fecundidade, mas promete que o casal gerará uma linhagem de reis.

O Senhor muda o nome de Abrão para Abraão: o nome que significa “pai de muitos” agora é trocado por um que significa “pai de uma multidão”. A mudança do nome implica em uma mudança decisiva na vida de Abraão. Deus confirma que Ele mesmo realizará em sua vida a promessa que fez.

A concretização do chamado a Abraão ocorre quando ele se torna pai de Isaac: “O Senhor visitou Sara, como havia dito, e cumpriu o que prometera. No tempo marcado por Deus, concebeu ela e deu a Abraão um filho, embora estivesse ele já muito velho” (Gn 21,1-2). Em seu tempo de vida, ele terá Isaac como único filho com Sara, e, por meio desse filho, a promessa de Deus se realizará, resultando em uma linhagem de reis, até o nascimento daquele que é o Rei dos Reis, Cristo Jesus.

Observando-se, porém, a trajetória de Abraão, pode-se dizer que a concretização de uma posteridade numerosa como as estrelas não foi vista por ele e por sua esposa. “Todas essas pessoas morreram com fé, sem terem recebido os bens prometidos. Mas os viram de longe e os saudaram. E confessaram que eram estrangeiros e andarilhos por este mundo” (Hb 11,13).

Crer e pôr-se a caminho!

 Desde o primeiro chamado, quando Abraão estava em Haran, seguindo pelo caminho até o nascimento de Isaac, o patriarca foi recolhendo frutos de sua jornada. Ainda que não tenha visto o povo hebreu povoar o território, nem o surgimento da realeza de Israel, e muito menos o reinado de Cristo, Abraão foi construindo altares para Deus, fazendo sacrifícios em oferta; intercedeu em favor de seu povo; ajudou sua parentela.

Esses sinais confirmam o caminho seguido e revelam que, se por um lado há diferença entre vocação e missão, na verdade a relação entre elas é intrínseca. A vocação é o modo que Deus escolheu para a pessoa se unir a ele e ser plena, e a missão é a atualização da vocação em cada momento da vida, ou seja, é a expressão do chamado no tempo presente.

 A vocação/missão se inicia quando a pessoa decide pôr-se a caminho, na escuta de Deus, e só estará plenamente realizada na eternidade, quando todos os frutos, todas as estrelas, toda a posteridade, estiverem completos. De fato, cada vocação possui uma perspectiva escatológica: na medida em que vamos seguindo o caminho de nossa vocação, realizando a obra que o Pai nos confiou, na esperança dos bens futuros, vamos cooperando com a nossa salvação (cf. Fl 2,12).[14] “Assim, ‘enquanto habitamos no corpo, vivemos no exílio longe do Senhor’ (2Cor 5,6) e, apesar de possuirmos as primícias do Espírito, gememos dentro de nós (cf. Rm 8,23) e suspiramos por estar com Cristo (cf. Fl 1,23)”.[15]

 Abraão, ao pôr-se a caminho e crer naquilo que Deus lhe dizia, respondia positivamente ao chamado: seria contraditório partir em um sentido e dar respostas opostas nas etapas sucessivas desse caminho, como se não houvesse um destino claro que o levasse de Haran até Canaã, ou da infertilidade à fertilidade. Cada passo reflete a orientação seguida no decorrer da resposta a ser dada.

 Verifica-se na vida de Abraão que, após a aliança e o cumprimento do início da promessa de posteridade, Deus o põe à prova em seu amor e em sua confiança pedindo a vida de seu filho Isaac. Deus não quer perder o coração de Abraão, pois Ele é zeloso por aqueles que ama. O pedido de Deus tem um valor formativo e medicinal: formativo porque recorda ao homem sobre a sua condição de criatura que deve render culto ao seu Criador e viver em justiça, seguindo o Seu falar, pois Aquele que escolheu, também chamou e guiou os passos, e fez uma aliança de ser o Deus de muitas gerações.

Ao mesmo tempo é medicinal porque Deus sabe que, com grande facilidade, o homem termina por amar mais a si mesmo e aquilo que recebeu do que o próprio Deus, pois, como os nossos primeiros pais, o homem procura ser senhor de sua própria verdade e de sua própria vida (cf. Gn 3,1-6). “Toma teu filho, teu único filho, que tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriah e lá oferecê-lo-ás em holocausto sobre um dos montes que te indicarei” (Gn 22,2).

Eis o grande momento de Abraão renovar o seu amor. Deus, que pedagogicamente pede, não tem medo de fazê-lo sofrer a angústia da perda, porque Ele é o Senhor do encontro e da vida. No ato de obediência a Deus de Abraão, se revelará a vida em abundância, a vida do Eterno. Só Deus pode dar e manter a vida e ninguém mais. Se de tudo o que de graça recebeu retiver para si alguma coisa, isso não permanecerá em vida, pois o homem, por si mesmo, não consegue manter nada em vida. Tudo morrerá e se perderá, e levará consigo também o coração do homem que o retém. Porém, tudo aquilo que o homem perder pela Palavra de Deus viverá eternamente. Deus sabe o que pede a Abraão e ele precisa dar esse passo.

Deus não duvida de sua obediência porque recebe cada ato do homem, mas Abraão precisa crescer e tornar-se forte em seus atos até que seu coração não mais oponha resistência a Deus. Por isso, por amor a Abraão, Deus, em sua infinita bondade e paternidade, o colocará à prova quantas vezes for necessário, para que cresça no amor e na confiança e não se esqueça de que, no início de tudo, ele entregou a vida em Suas mãos.

O amor de Abraão por Deus se revelará em sua livre escolha por obedecer mais uma vez a Sua voz, entregando a Ele aquilo que mais amava: seu filho Isaac. O amor de Abraão ganhou forma estética e plasmou-se como exuberante virtude divina em sua história e em sua alma, através da obediência a Deus.

 O sacrifício de Isaac, ainda que não consumado, é prefiguração do sacrifício redentor de Cristo, que será levado a cabo no Monte Calvário como salvação para o mundo. Encontramos aqui o sentido da renúncia na vivência da vocação. “Jesus disse a seus discípulos: ‘Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me, pois, quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; mas quem perder a vida por amor de mim vai encontrá-la de novo’” (Mt 16,24-25). Na vocação sacerdotal, o sacrifício é uma realidade que se tornará profícua quando vivida em comunhão com Deus. 

A vocação só frutifica em Deus

Os frutos de uma vocação dependem da correspondência aos planos de Deus; afinal, tudo será ensinado por Cristo, aprendido em Cristo e praticado em comunhão com Cristo. Desse modo, fora daquilo que Ele ensinou, não há nada que seja agradável aos Seus olhos, porque tudo que recebeu do Pai Ele nos transmitiu. Fora d’Ele restará somente aquilo que é do homem e que necessariamente será pecado.

Não há um modo de viver a vocação e o exercício missionário da própria vocação como algo auto referencial. Isso é completamente desagradável aos olhos de Deus. Ainda que o indivíduo quisesse acreditar que possui a autonomia de determinar seu caminho, tudo aquilo que for alheio à vontade do Senhor e ao modo como Jesus nos ensinou a viver não alcançará a plenitude de que seria capaz e estará condenado à ruina ao longo do tempo.

Mesmo totalmente sob a vontade do Pai, não será uma tarefa fácil, mas se torna possível porque é Palavra e mandamento divino, e só se realizará no coração daqueles que confiam em Deus e encontram a sua força no Senhor. A força de Deus se manifesta em nossa fraqueza humana somente quando trilhamos o caminho da humildade e do abandono a Ele.

Guiados pelo Espírito Santo

 A força do Espírito Santo e a graça que são conferidas ao sacerdote com o sacramento da Ordem, colocam-no num estado de vida diferente dos demais homens. Na vivência da vida sacerdotal, serão de grande valia todo progresso nas dimensões humana, espiritual, intelectual e pastoral, adquirido com os anos de formação. O mundo oferece muitas provações e ocasiões de afastamento do caminho pensado por Deus, mas, fortalecido por todos os dons recebidos, perseverante na oração e na direção espiritual e fiel à missão que lhe foi confiada, tudo será superado pelo sacerdote.

Certamente, poderá acontecer uma situação na qual alguém sofra a queda não somente com relação ao pecado, mas ao esfriamento do amor que um dia o impeliu a seguir Cristo. O que fazer? São João Paulo II nos ensina: “A oração ajuda-nos a crer, a esperar e a amar, mesmo quando a isso se opõe a nossa fraqueza humana. A oração permite-nos, ainda, redescobrir continuamente as dimensões daquele Reino, cuja vinda suplicamos todos os dias, ao repetir as palavras que Cristo nos ensinou.

Damo-nos então conta do nosso lugar na realização desta petição: ‘Venha a nós o vosso Reino’. Vemos assim quanto somos necessários para que ela se torne realidade. Talvez, ao rezar, descobrimos mais facilmente aqueles ‘campos que já branquejam para a ceifa’ (Jo 4,35) e compreendamos melhor o significado das palavras que Cristo pronunciou ao entrevê-los: ‘Rogai, pois, ao Senhor da messe que envie trabalhadores para a sua messe’ (Mt 9,38).”[16]

Ao meditamos sobre as vocações, não podemos esquecer da Virgem Maria. Ela que é “membro supereminente e absolutamente singular da Igreja”, é também seu “protótipo e modelo acabado”.[17] De fato, na perspectiva do caminho vocacional, Maria escuta o anúncio do Anjo Gabriel e dá o seu “sim” para o projeto de Deus, ainda que não vislumbrasse como ele se realizaria. Em nenhum momento procura interferir nos planos de Deus para seu Filho ou para si mesma, mas se coloca totalmente disponível, guardando e meditando todas as promessas em seu coração (cf. Lc 2,19). Em tudo aprendeu e cresceu iluminada e guiada pelo Espírito Santo, através da obediência a Deus pela escuta atenta e o silêncio interior.

Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro


[1] Bento XVI, Mensagem pelo 43º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, 07/05/2006.

[2] João Paulo II, 16ª Mensagem para o Dia Mundial das Vocações (06/01/1979)

[3] João Paulo II, 38ª Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, 06/05/2001.

[4] O sacerdote “é tomado dentre os homens e designado para servir a Deus em favor deles”. Os propósitos e promessas manifestados no rito de ordenação incluem (1) desempenhar sempre a missão de sacerdote no grau de Presbítero, como fiel colaborador dos Bispos, apascentando o rebanho do Senhor, sob a direção do Espírito Santo; (2) desempenhar com dignidade e sabedoria o ministério da palavra, proclamando o Evangelho e ensinando a fé católica; (3) celebrar com devoção e fidelidade os mistérios de Cristo (sacramentos), sobretudo a Eucaristia, a Reconciliação, segundo a tradição da Igreja, para louvor de Deus e santificação do povo cristão; (4) ser assíduo ao dever da oração (Liturgia das Horas, em especial, conforme promessa feita na ordenação diaconal), implorando a misericórdia de Deus em favor do povo a ele confiado; (5) unir-se cada vez mais ao Cristo e com ele ser consagrado a Deus para salvação da humanidade; (6) prometer respeito e obediência ao Bispo e seus sucessores.

[5] João Paulo II, 38ª Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, (06/05/2001)

[6] FRANCISCO, 52ª Mensagem para o Dia Mundial das Vocações, (26/04/2015)

[7] Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, O dom da Vocação Presbiteral, 43.

[8] Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, O dom da Vocação Presbiteral, 28.

[9] FRANCISCO, 54ª Mensagem para o Dia Mundial das Vocações, 07/05/2017.

[10]JOÃO PAULO II, Pastores Dabo Vobis, 29.

[11] João Paulo II, 35ª Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, (03.05.1998)

[12] Santa Teresa de Jesus. Castelo Interior ou Moradas. São Paulo: Paulus, 1981, p. 42.

[13] Um exemplo forte para isso está na dimensão psicoafetiva. Apesar da sua importância, essa dimensão, não deve assumir papel norteador para a tomada das decisões finais de discernimento. A dimensão psicoafetiva se ilumina, enriquece e robustece através da vida sacramental, da oração e da vivência comunitária que darão a forma para os frutos do Espírito Santo, como paz, paciência, alegria, castidade, mansidão, fidelidade etc. Por isso, insistimos no fato de que o itinerário formativo e seu discernimento são um percurso, progressivo, gradual, integral e comunitário que envolve harmonicamente todas as dimensões da formação sacerdotal. (Cf. JOÃO PAULO II, Pastores Dabo Vobis, 43-56; Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, O dom da Vocação Presbiteral, 3.)

[14] Cf. Lumen Gentium, n. 48. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 172.

[15] Cf. LG 48

[16] João Paulo II, Carta aos sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa, 1979.

[17] Lumen Gentium, n. 53. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 180.