Na aparente derrota, a vitória de Cristo

Sexta-feira Santa a Paixão de Cristo, Jesus crucificado é tirado da cruz
Material para catequese
Material para catequese

Chegamos à Semana Santa ou, como preferem alguns, à “Semana Maior”, pois nela celebramos os grandes eventos finais da vida de Cristo nesta terra e que estão ligados mais diretamente à nossa salvação pelos atos do Senhor chamados de redenção propiciatória. Nela, vemos, por uma aparente derrota a verdadeira vitória de Cristo. Reflitamos!

Cremos ser importante expor o que se entende por redenção em seu duplo aspecto, ou seja, o físico místico e o propiciatório. Mostra-nos a Sagrada Escritura, que foi por insídia do diabo que o pecado e a morte entraram no mundo, por isso o Senhor Jesus, a vida por excelência (Jo 14,6), veio até nós para derrotar o pecado, a morte e o demônio com seu sacrifício de cruz.

Toda a Sua vida e Sua obra são redentoras – redenção é a recuperação de um objeto precioso mediante pagamento, o que supõe um regime de escravidão a ser superado – e podem ser entendidas em dois aspectos: a redenção físico-mística ou, como enfatizavam os antigos teólogos orientais, a redenção por contato. Ela significa que, desde a Sua concepção no seio materno de Maria, passando pela sua comparação identificadora com objetos diversos (pão, luz, porta, videira, cordeiro etc.), seu batismo, pregação, milagres etc., está em curso o processo de redenção do mundo. Tudo o que tem contato com o homem é transfigurado para uma realidade nova, a realidade recriada por Cristo.

Daí também tudo o que é humano interessar, de algum modo, à Igreja, conforme lemos, logo no início da Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história” (n. 1).

“Por isso, o Concílio Vaticano II, tendo investigado mais profundamente o mistério da Igreja, não hesita agora em dirigir a sua palavra, não já apenas aos filhos da Igreja e a quantos invocam o nome de Cristo, mas a todos os homens. Deseja expor-lhes o seu modo de conceber a presença e atividade da Igreja no mundo de hoje. Tem, portanto, diante dos olhos o mundo dos homens, ou seja a inteira família humana, com todas as realidades no meio das quais vive; esse mundo que é teatro da história da humanidade, marcado pelo seu engenho, pelas suas derrotas e vitórias; mundo, que os cristãos acreditam ser criado e conservado pelo amor do Criador; caído, sem dúvida, sob a escravidão do pecado, mas libertado pela cruz e ressurreição de Cristo, vencedor do poder do maligno; mundo, finalmente, destinado, segundo o desígnio de Deus, a ser transformado e alcançar a própria realização” (n. 2).

É na morte e ressurreição do Senhor que a redenção propiciatória se dá. É nesses eventos que se manifesta o imenso amor puramente benevolente de Deus por nós (cf. Jo 4,10; 2Cor 5,18), cujo Filho se entrega, como sacerdote, altar e cordeiro em expiação (cf. 1Jo 2,2) para derrotar o pecado, a morte e o diabo, realidades reinantes neste mundo até àquela hora. Se a carne foi o instrumento com o qual o velho homem, Adão, pecou, a carne do novo homem, Cristo, nos trouxe a salvação. Isso é a recapitulação (usar o mesmo instrumento do mal para o bem, cf. Rm 8,3). Desse modo, o ser humano pecador torna-se, no sacrifício de Cristo, ser humano redimido e, por isso, aberto à graça de Deus.

O demônio foi despojado de seu poder (cf. Jo 12,31; Cl 2,13-15), embora, desde o início, ele quisesse dominar o Senhor Jesus tentando-O diretamente (cf. Mt 4,1-11; Lc 22,3.53) ou instigando os homens contra Cristo (cf. Jo 13,2; 1Cor 2,8). Todas as suas tentativas, diretas ou indiretas, foram, no entanto, frustradas, pois o Senhor Jesus é igual a nós em tudo, menos no pecado. Sua carne humana escondia a Divindade capaz de enfrentar e derrotar todo mal. Também a morte foi vencida, pois Cristo, inocente como era, nada devia à morte (cf. Jo 12,31; 14,30); por isso; ela não pôde detê-lo no cárcere, como tinha feito até aquele momento com os demais homens. Ao contrário, sua aparente derrota imposta ao Senhor serviu-Lhe de ponte para a Sua grandiosa vitória na Ressurreição corporal, centro da mensagem cristã (1Cor 15,14). Assim se dá até hoje: os homens e mulheres continuam, sem exceção, a morrer, mas essa aparente dominação serve de passagem para a vida definitiva em Deus. No dia da consumação final, será a morte totalmente destruída (cf. 1Cor 15,16), embora já esteja derrotada desde a morte e ressurreição do Senhor Jesus, o centro da História.

Daí, a mãe Igreja O apresenta, na mesma Gaudium et Spes como a resposta e a solução de toda problemática humana: “Na verdade, os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem. Porque no íntimo do próprio homem muitos elementos se combatem. Enquanto, por uma parte, ele se experimenta, como criatura que é, multiplamente limitado, por outra sente-se ilimitado nos seus desejos, e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz, muitas vezes, aquilo que não quer e não realiza o que desejaria fazer (Rm 7,14-15). Sofre, assim, em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão grandes discórdias se originam para a sociedade. Muitos, sem dúvida, que levam uma vida impregnada de materialismo prático, não podem ter uma clara percepção desta situação dramática; ou, oprimidos pela miséria, não lhe podem prestar atenção. Outros pensam encontrar a paz nas diversas interpretações da realidade que lhes são propostas. Alguns só do esforço humano esperam a verdadeira e plena libertação do gênero humano, e estão convencidos que o futuro império do homem sobre a terra satisfará todas as aspirações do seu coração. E não faltam os que, desesperando de poder encontrar um sentido para a vida, louvam a coragem daqueles que, julgando a existência humana vazia de qualquer significado, se esforçam por lhe conferir, por si mesmos, todo o seu valor. Todavia, perante a evolução atual do mundo, cada dia são mais numerosos os que põem ou sentem com nova acuidade as questões fundamentais: Que é o homem? Qual o sentido da dor, do mal, e da morte, que, apesar do enorme progresso alcançado, continuam a existir? Para que servem essas vitórias, ganhas a tão grande preço? Que pode o homem dar à sociedade, e que coisas pode dela receber? Que há para além desta vida terrena?”

“A Igreja, por sua parte, acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todos (2Cor 5,15), oferece aos homens pelo seu Espírito a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação; nem foi dado aos homens sob o céu outro nome, no qual devam ser salvos (At 4,12). Acredita também que a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e mestre. E afirma, além disso, que, subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje, e para sempre (7)” (n. 10; cf. n. 22).

É com este importante pano de fundo, que estamos na Semana Santa de 2023. Ela não deve ser vista como outra de nossa vida, mas, sim, como “a Semana Santa”, pois cada evento que vivenciamos, por mais que pareça repetitivo ou rotineiro não o é. Traz sempre algo de novo para o nosso viver. É sempre um kairós ou um tempo favorável da graça divina a todos nós. Que vivenciando a aparente derrota do Senhor, na Sexta-Feira Santa, e a Sua verdadeira vitória, na Vigília Pascal, nos sintamos novas criaturas em Deus, o Alfa e o Ômega da História (cf. Ap 22,13) e, com Ele, por Ele e n’Ele, agentes de transformação da humanidade do pecado à graça divina. Amém.

Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ