Faze isto e viverás

Material para catequese
Material para catequese

Quem é o meu próximo? Quem é aquele que o Senhor mandou amar? Quem são aqueles que o Senhor coloca em minha vida para que faça o bem a eles? Há muitas ideias sobre quem é nosso próximo: às vezes somente aqueles que são da nossa etnia, do nosso grupo, da nossa religião, do mesmo país, aquele que está mais perto de mim.

Ao mesmo tempo que nos é lançada esta pergunta, temos a pergunta de qual é o mandamento do Senhor para que possamos encontrar o verdadeiro caminho para a vida, conforme nos diz a palavra do Senhor.

Neste 15º Domingo do tempo comum, a Palavra de Deus vai nos responder com muita clareza o que devemos fazer, como devemos agir, e em relação a quem somos chamados a nos dirigir neste momento da história, onde a palavra de Deus aparece mais uma vez viva e eficaz, de maneira atual, que penetra nosso coração como a espada de dois gumes e que nos faz enxergar o plano e a vontade do Senhor.

O Evangelho deste 15° domingo do tempo comum (Lc 10, 25-37) assim tem seu início: Naquele tempo: Um mestre da Lei se levantou e, querendo pôr Jesus em dificuldade, perguntou: ‘Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?’
Jesus lhe disse: ‘O que está escrito na Lei? Como lês?’ Ele então respondeu: ‘Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua inteligência; e ao teu próximo como a ti mesmo!'(Lc 10, 25-27).

O mestre da lei responde segundo uma mentalidade já contida na tradição judaica: usa dois textos do Antigo Testamento, citando o shemá (o mandamento de amar Deus acima de todas as coisas e com todas as forças) e o preceito do amor ao próximo como a ti mesmo. O mestre da lei resume afirmando que para alcançar a vida eterna é necessário amar a Deus e ao próximo. Jesus se apresenta favorável à resposta do mestre da lei, reafirmando a necessidade de que ele seja colocado em prática: Jesus lhe disse: ‘Tu respondeste corretamente. Faze isso e viverás.’ (Lc 10, 28).

Nós sabemos a resposta. Sabemos aquilo que é a vontade do Pai: Amar a Deus e amar o próximo. Creio que todos temos aprendido isso desde pequenos. Mesmo os não cristãos tomam essa realidade como própria, influenciado pelas culturas que tem como base o cristianismo. Jesus é claro e prático ao apresentar esta questão: faze isto e viverás. Apresenta a dimensão horizontal, de amar o próximo, junto com a dimensão vertical, colocando nesta a base do amor ao próximo: o amor a Deus.  Mas o mestre da lei, querendo colocar Jesus à prova, lança a pergunta que dá motivo para a exposição da parábola: “Ele, porém, querendo justificar-se,
disse a Jesus: ‘E quem é o meu próximo?”
(Lc 10, 29). Havia uma questão vigente entre os judeus e que vinha também dos ambientes de cultura helênica: o próximo era somente aquele companheiro do mesmo povo, da mesma cidade e da mesma raça, podendo então odiar o bárbaro, odiar meu inimigo.

Ante este questionamento, Jesus conta a parábola do Bom Samaritano: Jesus respondeu: ‘Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes. Estes arrancaram-lhe tudo, espancaram-no, e foram-se embora deixando-o quase morto. Por acaso, um sacerdote estava descendo por aquele caminho. Quando viu o homem, seguiu adiante, pelo outro lado.
O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu o homem e seguiu adiante, pelo outro lado
.(Lc 10, 30-32).

Havia uma questão legal de purificação por parte dos judeus, onde estes se tornariam impuros ao tocar em um cadáver, não podendo ingressar no Templo por conta disso. O homem que estava caído era um judeu e que foi deixado ali por seus compatriotas judeus. Curiosamente, o protagonista da parábola vai ser alguém que era considerado inimigo do povo judeu, e, portanto, não digno de ser considerado próximo: Mas um samaritano que estava viajando,
chegou perto dele, viu e sentiu compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal e levou-o a uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, pegou duas moedas de prata
e entregou-as ao dono da pensão, recomendando: ‘Toma conta dele! Quando eu voltar, vou pagar o que tiveres gasto a mais.'(Lc 10, 33-35).

Vemos alguém que era considerado socialmente inimigo do outro. Foi este quem parou e viu a situação daquele que estava lançado à beira do caminho. E não somente teve um gesto de percepção em relação àquele moribundo, mas faz muito mais por ele. Jesus então pergunta: E Jesus perguntou: ‘Na tua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?’
Ele respondeu: ‘Aquele que usou de misericórdia para com ele.’
Então Jesus lhe disse: ‘Vai e faze a mesma coisa.’ (Lc 10, 35-37).

O samaritano, o supostamente inimigo é quem usa de misericórdia para com o caído. É o próximo dele. Jesus desconstrói a questão da tradição vigente de amar os amigos e odiar os inimigos. O próximo é aquele que está ao nosso lado, independente da circunstância, e precisa de nós. Jesus propõe não só amar o próximo, como também amar o inimigo. Amar acima do ódio, do rancor e da dimensão histórica vigente naquele conflito. Próximo é todo aquele que precisa de nossa misericórdia. Olhamos com misericórdia por não olhar o ser humano como mera criatura, mas o olhamos com um olhar sobrenatural. O amor ao próximo supera a mera filantropia porque vemos no próximo um filho de Deus. Vemos no próximo um irmão. A partir desta mentalidade teremos um instrumento eficaz para transformar nossa sociedade. Vai e faze tu o mesmo! Afogar a maldade na abundância do bem movidos pela Graça de Deus e pelo dom do Senhor.

Jesus louva e aceita o resumo da lei que fez o escriba judeu. Sua resposta se coloca como uma composição de dois textos do Pentateuco. Cristo, com a parábola do Bom Samaritano, faz crescer os horizontes desse amor que tinha ganhado dimensões reduzidas no contexto de um ambiente legalista: o próximo não é somente aquele com quem temos alguma afinidade, seja de parentesco, de raça, de religião, mas todo aquele que necessita de nossa ajuda, sem distinção de raça, religião abrangendo-se até abarcar todo ser humano como filho do mesmo Pai. A parábola também deixa claro como devemos amar o nosso próximo: tratando-o com misericórdia, compadecendo-se de suas necessidades espirituais e corporais, deixando que nossas ações sejam eficazes e concretas, mostrando-se em obras de entrega e serviço, não ficando no mero sentimento.

Vemos mais uma vez, assim como em outras ocasiões, como Jesus se comove e se compadece ante o sofrimento do homem.

Jesus é a encarnação da misericórdia divina já que realiza os mesmos gestos misericordiosos do Pai.

Desde os primeiros séculos, a parábola foi interpretada de maneira alegórica. Santo Agostinho apresenta Cristo como o bom samaritano da humanidade e ao homem que foi assaltado pelos ladrões com Adão, que está na origem da eternidade caída: “O mesmo Senhor e Deus quis ser chamado de nosso próximo, pois Cristo simbolizou nele mesmo o socorro ao homem caído no caminho, abandonado pelos ladrões. ”

Podemos apontar também um outro simbolismo: o homem ferido tem suas feridas tratadas na Igreja. Ainda afirma assim S. Agostinho: “Onde a alma se encontra enquanto é curada de suas feridas por aquele que se fez propiciação por tuas iniquidades? Deves reconhecer que te encontras naquela hospedaria onde o piedoso samaritano conduziu aquele que encontrou quase morto, ferido pelas muitas feridas que lhe causaram os ladrões. ”

É essa palavra que pode ser colocada em prática que foi referida na primeira leitura, tirada do livro do Deuteronômio (Dt 30, 10-14): Ouve a voz do Senhor teu Deus, e observa todos os seus mandamentos e preceitos, que estão escritos nesta lei. Converte-te para o Senhor teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma. Na verdade, este mandamento que hoje te dou não é difícil demais, nem está fora do teu alcance. Encontramos aqui o eco do que foi proclamado no Evangelho: vai e faze tu o mesmo. Palavra que pode ser colocada em prática, pois não está longe de nós, está próxima de nós, está em nós: Não está no céu, para que possas dizer: ‘Quem subirá ao céu por nós para apanhá-lo?
Quem no-lo ensinará para que o possamos cumprir?’ Nem está do outro lado do mar, para que possas alegar: ‘Quem atravessará o mar por nós para apanhá-lo? Quem no-lo ensinará para que o possamos cumprir?’ Ao contrário, esta palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração, para que a possas cumprir. (Dt 30, 12-14).
Já o Antigo Testamento mostra essa necessidade de fazer da Palavra de Deus vida da nossa vida.

A carta de S. Paulo aos Colossenses (Cl 1, 15-20) vai mostrar que este grande sinal do amor de Deus para conosco é o próprio filho Jesus Cristo, aquele que mesmo do alto da cruz pede perdão para os seus inimigos, aqueles que não sabiam o que faziam. Portanto  “Cristo é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele, foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio d’Ele e para Ele. Ele existe antes de todas as coisas e todas têm n’Ele a sua consistência. Ele é a Cabeça do corpo, isto é, da Igreja. Ele é o Princípio, o Primogênito dentre os mortos; de sorte que em tudo Ele tem a primazia, porque Deus quis habitar n’Ele com toda a sua plenitude e por Ele reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz.” Em Cristo há unidade, há comunhão entre todos nós.

Portanto, a palavra nos convida a buscar a vida eterna, e que esta vida eterna se alcança no amor a Deus e ao próximo, a toda pessoa que Deus coloca em nossa frente para que façamos a elas o bem. Esta palavra está próxima de nós para que a possamos cumprir. É Cristo quem faz com que tudo isso seja possível e aconteça, sendo o grande reconciliador de todos os seres com o Pai, realizando a paz com o sangue de sua cruz. Que esta palavra, que nos faz ver e viver no mundo de uma outra forma, seja acolhida e que nos deixemos conduzir por ela: Faze isso e viverás.

Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro