Neste tempo da Quaresma e já nos aproximando da Semana Santa – tempo litúrgico especial que a mãe Igreja nos oferece em preparação à Páscoa do Senhor, maior solenidade cristã –, desejo meditar, à luz de excertos de preciosos textos de alguns sábios monges cartuxos, filhos espirituais de São Bruno de Reims (cerca de 1030 a 1101), sobre a kênosis, um termo grego muito importante, mas, infelizmente, assaz esquecido entre parte do Povo de Deus.
Significativa para nossa reflexão é a Carta de São Paulo aos Filipenses 2,6-11: “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no céu, na terra e nos infernos. E toda língua confesse, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor”.
Em suma, o trecho citado nos diz que Jesus, mesmo sendo Deus, não se valeu disso a fim de se engrandecer, mas, ao contrário, humilhou-se e se fez igual a nós em tudo, exceto no pecado. Foi extremamente obediente a ponto de morrer na cruz, após indizíveis sofrimentos, para nos salvar da morte eterna. Deus, porém, que derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes (cf. Lc 1,52) e, mais de uma vez, ensina ser a exaltação caminho para a humilhação e a humilhação via para a exaltação (cf. Lc 14,11), fez Seu amado Filho triunfar. Daí, no céu, na terra e nos infernos, todos O reconhecem, de modo reverente, como Kýrios (Senhor, termo grego que, na Bíblia dos LXX, traduz o nome Javé: Deus).
Ora, essa humildade, esse despojamento ou abaixamento de Cristo, nosso Senhor, é o que a Teologia chama de kênosis, expressão derivada do citado texto grego de Fl 2,7: heautón ekênosen. Quer dizer, uma renúncia de privilégios, privilégios que Sua divindade unida à humanidade Lhe daria direito, mas Ele renunciou e preferiu assumir a condição de escravo, uma vez que, mesmo sem pecado algum, carregou sobre si as nossas penas e enfermidades (cf. Is 53,4.6; 2Cor 5,21; Gl 3,13) para nos salvar. Afinal, só em Cristo há salvação (cf. At 4,12; Ef 1,7; Cl 1,14 etc.). É só por Ele que fomos, de fato, reconciliados com Deus (cf. Dom Cirilo Folch Gomes, OSB. Riquezas da mensagem cristã. 2ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1981, p. 353-368). Isso também é o que nos recorda o Concílio Vaticano II (1962-1965) ao ensinar: “Por si mesmo e por próprias forças não há ninguém que se liberte do pecado e se eleve acima de si mesmo, ninguém absolutamente que se liberte a si mesmo da sua enfermidade, da sua solidão ou da sua escravidão, mas todos precisam de Cristo como modelo, mestre, libertador, salvador, vivificador” (Ad Gentes, n. 8).
Feito este breve, mas necessário preâmbulo, volto-me a alguns trechos de obras escritas por monges cartuxos ao longo da história. Extraio-os do alentado livro assinado por “Um Cartuxo”, como é tradição da Ordem, e tem por título Antologia de autores cartuxos. Itinerário de contemplação (São Paulo: Cultor de Livros, 2020). Ao citar suas palavras originárias de uma madura reflexão da Palavra de Deus em suas próprias celas, materialmente modestas, mas espiritualmente repletas da graça divina, desejo estimular a busca sequiosa da água que jorra da verdadeira fonte, que é Cristo (cf. Jo 4,14), e não de cisternas furadas (cf. Jr 2,13). Possa este meu desejo, se for da vontade do Pai celestial, produzir seus frutos em cada leitor(a).
O primeiro cartuxo que desejo mencionar é Ludolfo da Saxônia († 1377), em sua Vita Christi, obra magistral que muito ajudou Santo Inácio de Loyola (1491-1556) chegar à conversão. Escreve ele sobre o tema central desta nossa reflexão estas ricas palavras: “Assim como a soberba é abominada por Deus e pelos homens, do mesmo modo a humildade é amada diante de Deus e dos homens; porque quem é humilde está repleto de caridade, é agradável, afável e serviçal; nenhuma coisa vale tanto para fazer-se amável a Deus e aos homens quanto ser grandes em méritos e virtudes, e pequeninos pela humildade. Para ser humildes desse modo, consideremos diligentemente a humildade de Jesus Cristo que, mesmo sendo o Rei dos reis, Deus Verdadeiro, Unigênito do Pai, viveu neste mundo como verdadeiro humilde a fim de que nós o imitássemos (cf. 1Pd 2,21)”.
“Jesus Cristo fez primeiro com as obras o que ensinou depois com as palavras; dizia, com efeito: ‘Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração’ (Mt 11,29b). Isso Ele quer, antes de nada, fazer; e não dissimulando, mas sinceramente porque era, verdadeiramente, manso e humilde de coração. Nele não podia existir simulação alguma; em contrapartida, praticou uma íntima e profunda humildade, ‘despojo’ e abaixamento até humilhar-se diante de todos. É, portanto, verdade nisso o que diz o Apóstolo: ‘Despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano’ (Fl 2,7) e não só a condição, quer dizer a forma de um servo inútil, mas com sua humildade de vida. Considera as ações únicas de Jesus Cristo e verás que nelas resplandece, sempre, a humildade” (Vita Jesu Christi, parte I, c. XVI, nn. 4-5, p. 161).
Da humildade de Cristo, deve vir a nossa. Isso é o que nos recorda Dionísio, o cartuxo († 1471). Diz ele: “A humildade é uma virtude com a qual o homem, por meio da contemplação profunda do seu Criador e do verdadeiro conhecimento de si mesmo, se faz vil aos seus próprios olhos, se rebaixa e submete-se a Deus”. Por isso, quem, como Nosso Senhor, Nossa Senhora, os anjos e alguns seres humanos agraciados – cada um em seu grau – conheceu a dignidade, a onipotência e a perfeição imensa de Deus, fez-se humilde sem hesitar. Com efeito, segue o monge seu lógico raciocínio: “Se analisarmos bem, encontraremos muita matéria para nos humilharmos. E o que somos por natureza? O que somos na alma? O que somos em nossa carne corrompida? E, quiçá, não é verdade que estamos cheios de defeitos e que somos frágeis e impuros? E o que somos depois do pecado original? Somos muito ingratos, perversos e malvados, cometemos continuamente muitas faltas, estamos rodeados de laços e perigos, e nossas misérias são infinitas, como disse Jó: ‘O homem, nascido de mulher, curto de dias, farto de inquietude, como flor se abre e se murcha, foge como a sombra sem parar-se’ (Jó 14,1). […]”
“Consideremos com frequência esta verdade, e humilhemo-nos profundamente diante de Deus, confessando com humildes lágrimas nossa pobreza, misérias, ruindade, enfermidade e nossas culpas, assim como as inclinações a todo vício para ser, assim, por Ele ajudados, confortados e defendidos em todo tempo. Então, certamente virá ao nosso socorro o Senhor, rico em misericórdia, o qual cobre os vales, quer dizer, os espíritos humildes, enchendo-os de graças, conservando-os e conduzindo-os à perfeição. Deus guarda e defende os humildes como está escrito na Escritura: ‘O Senhor protege os humildes’ (Sl 114,6a); O Senhor dá aos humildes sua luz, já que, como está escrito nos Salmos: ‘Ao revelar-se, tua palavra dá sabedoria aos simples’ (Sl 118,130)”. (Dominica IV Adventus, sermo sextus, Opera omnia, t. 29, pp. 109-110).
Possam estas modestas reflexões – associadas à Regra de São Bento, capítulo VII, comentada n’Os graus da humildade e da soberba, de São Bernardo de Claraval (São Paulo: Katechesis, 2022) – ser útil a quantos desejam configurar-se a Cristo Jesus (cf. Rm 8,29) por meio de sua kênosis. Santa Quaresma a todos!
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ