Dentro de nossas reflexões quaresmais, um tema sempre constante é o da penitência durante este tempo. Nós olhamos como tempo de conversão e a importância de voltarmos nossas vidas para o Senhor que nos salva. Assim nos preparamos para a grande Celebração do Mistério da sagrada Morte Paixão e Ressureição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Na história da Igreja, a tradição apostólica sempre valorizou as práticas penitencias, basta recordar os santos penitentes, por exemplo, São Francisco de Assis, o poverello é um mestre que nos ensina sobre a importância da oração e penitência quaresmal.
Nosso povo cristão sempre viveu a Quaresma, com profundo sentido de penitência. A penitência quaresmal está ligado às várias modalidades e práticas de reconciliação do homem com Deus, consigo mesmo e com o mundo.
Penitencia vem do Latim poenitentìa, cujo sentido evoca arrependimento, compunção, pesar e contrição, porém da raiz hebraica, significa retornar. Podemos então dizer que penitência é uma busca constante de conversão, isto é, retornar ao convívio de Deus, o Pai Misericordioso que sempre se compadece de nós, por seu amor.
A conversão não é um evento que acontece de uma vez por todas, nem algo que nos garante para o futuro. Ela é uma busca constante e que se renova sempre.
A conversão é um retorno perene a Deus, é por isso que no Antigo Testamento os profetas, especialmente Amós e Oséias, são chamados de profetas penitentes.
Eis aqui o grito do profeta; volte para Deus, volte ao relacionamento. Penitência significa rejeição de “supérfluo e da inutilidade”, para uma vida de relacionamento, único e verdadeiro com Jesus Cristo.
Em nossos dias, certamente, a Penitência parece estar “fora de moda”, isso porque nossa civilização ocidental tem todos os meios para incitar outros interesses como por exemplo o consumo, em favor da economia. E para fazer o progresso dos negócios, é necessário convencer as pessoas de que o uso intenso e excessivo de mercadorias, essa lógica de consumo material, o fará feliz!
Para onde isso tudo isso se encaminha? Aqueles que se recusam a deixar-se cegar pela propaganda veem como a exaltação do bem-estar. Nosso “desenvolvimento” imediato é baseado na miséria dos outros e prepara os conflitos do amanhã.
A própria ideia de penitência não é saudável, afirmam alguns propagandistas de ideologias modernas. É um sinal de regressão. Impede o desenvolvimento do homem, sua busca pela felicidade.
Sem dúvida há um tipo de penitência que pode matar, aniquilar o homem; aquele nascido de um sentimento de culpa doentio diante de um Deus visto como um juiz estrito e intransigente, quase ciumento da felicidade humana.
Mas esse sentimento é, na verdade, o outro lado do livre desencadeamento dos instintos, nesse sentido, podemos dizer que os extremos, em certo sentido, são desagradáveis diante da dimensão mais sagrada da fé cristã. A verdadeira penitência cristã, portanto, não é negativa, é libertação!
A penitência é a resposta ao chamado para viver verdadeiramente, não para acumular bens, mas para experimentar o encontro com o outro e, através destes, redescobrir a face de Deus. É a partida para a estrada do deserto, que é um caminho para a liberdade interior.
A tradição apostólica nos ensina que a penitência é uma prática da piedade cristã, muito valorizada pela Igreja, desde as suas origens. Ainda hoje, apesar dos desafios, a Igreja continua revivendo e atualizando estas práticas penitenciais de modo profético. Assim, a Igreja nos oferece uma visão precisa do homem em sua frágil e humana natureza, poderíamos dizer uma antropologia adequada da natureza humana e cristã.
Essa antropologia coloca o homem diante de suas três origens – Deus, em primeiro lugar, o cosmos e a sociedade, convidando o homem a crescer e restabelecer constantemente os laços autênticos de relação com cada um deles.
É necessário saber conectar as práticas de penitência com a Eucaristia celebrada no dia do Senhor, da qual seu jejum, esmola e oração encontram seu significado mais autêntico e profundo.
Os sinais penitenciais na vida cristã, são em primeiro lugar “atos de fé”, a abertura a Deus, e pertencem à Igreja como tal que, em preparação para a celebração da Páscoa, quer recordar aos fiéis a necessidade de proceder a uma jornada séria de conversão.
São Francisco de Assis, há mais de 800 anos atrás, escreveu uma carta com instruções de penitência, ficou conhecido na história como A Carta de São Francisco aos Fiéis; no primeiro capítulo do tratado, Francisco de Assis fala dos efeitos positivos da união com Deus pela oração e da necessidade de fazer penitência.
A leitura deste tratado espiritual chama imediatamente a atenção para o valor da penitência cristã na vida dos fiéis, para Francisco de Assis o elemento principal é o relacionamento, estar em relação com alguém. Isto é, com Deus, consigo mesmo e com o mundo numa comunhão de fraterna cosmovisão.
Nós não contemplamos Deus como um “motor imóvel”, como uma entidade, para ser estático; Deus se relaciona conosco e nós com Ele, eis aqui o dinamismo mais perfeito da nossa fé cristã.
Até mesmo a atração extraordinária que Francisco vive em direção a Jesus Cristo pode ser resumida com esta palavra; “estar-em-relação-com”, tanto que a obediência franciscana é obediência ao Evangelho.
O Evangelho é a própria vida de Jesus, portanto obediência é seguir no relacionamento com uma pessoa, com quem se tem um encontro tão próximo, como diz Paulo “Não sou quem vivo é Cristo que vive em mim” (cf. Gálatas 2,20).
É por isso que Francisco de Assis aparece como a alma apaixonada pela Palavra de Deus. Ele foi um seguidor fiel da verdade verdadeira que é Cristo.
Hoje falamos muito de valores, mas valores são impessoais, Cristo é pessoal. Se tivéssemos que escolher entre verdade e Cristo, com certeza escolheríamos sempre a Cristo.
Podemos colorir a verdade de muitas maneiras, até podemos colorir nossa própria verdade, mas Jesus Cristo não a colore de forma alguma, Ele é a verdade verdadeira.
Francisco estava claro que tudo o que não era um relacionamento com Deus não o queria nem para si nem para os seus irmãos. Para viver autenticamente essa relação com Deus, Francisco escolhe o caminho da penitência.
Para viver a união com Deus devemos abrir espaço dentro de nós e eliminar tudo o que não é necessário. Fazer penitência, portanto, significa afugentar coisas inúteis, a penitência aqui tem um valor positivo.
Fazer penitência é dar lugar a Cristo, a fim de que Ele preenche nosso vazio, nossa sede de amor e plenitude. Absolutamente, o aspecto meritório cai porque penitência, descobrimos, que tem um valor relacional.
A Penitencia Cristã é o jejum perfumado do Evangelho. São Francisco de Assis não percebe que está fazendo penitência, porém, era chamado de “homem penitente” de Assis, e porque não dizer, o homem feliz de Assis!
A Penitência é um ato de Amor e liberdade, é a contribuição que dou à graça de Deus para que possa ser realizada e expandida em mim, tanto que não há santo na Igreja que não seja penitente.
A penitência reacende em nós a energia do Cristo Ressuscitado. Fazer penitência, no entanto, requer método, já que não é um movimento espontâneo da natureza; depois do pecado original, o homem inclina-se mais para a acomodação, para a satisfação de seus instintos; daí a necessidade de uma certa disciplina.
Penitência e misticismo andam juntos, ascetismo e amor nunca são um sem o outro, mas na verdade parece que a penitência tem a função de proteger e guardar a vida dos infortúnios deste mundo.
São Francisco de Assis ao se dirigir aos fiéis, primeiro os convida à penitencia, exorta os cristãos à santidade de vida, abrindo espaço para Cristo. Tão belo seria este mundo se vivêssemos um pouco a exemplo do que foi são Francisco de Assis em seu século! Uma presença de Deus que iluminou o mundo.
Hoje este mundo que anda nas trevas do ódio, da ganância, do egoísmo, vem em nossa mente a figura do Poverello de Assis, o mundo tem saudade do testemunho eloquente do irmão Francisco de Assis.
A penitencia nos coloca a caminho e em relacionamento com o Divino, é o caminho da santidade de vida, é um retorno constante a Deus através do relacionamento íntimo que se dá por meio da escuta da palavra, dos sacramentos, da partilha do pão, e sobre tudo, do amor a Deus e aos irmãos.
Aqui está o sacerdócio comum dos fiéis, o serviço da caridade e a vida de santidade. Nós nos santificamos cumprindo bem o nosso papel de cristãos batizados. A verdadeira reforma do mundo se dará através pela santidade.
Para santificar o mundo, precisamos antes de tudo, santificar a nós mesmos. O mundo é o lugar onde Deus nos colocou; amar o lugar onde Deus nos enviou é um sinal do seu amor, porque o Senhor nos chama para santificar esse lugar através do amor e da penitencia cristã.
Peçamos ao Senhor, que Ele que nos ajude a viver este tempo precioso da Quaresma, em atitude e disponibilidade para a oração, jejum e caridade, e cultivar a piedade e penitencia como caminho de conversão e santidade de vida.
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ