Menino da caçamba

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O que seria de nossas cidades sem o serviço do recolhedor de entulhos, com suas caçambas milagrosas que fazem desaparecer de nossas vistas tudo de imprestável produzido em nossas construções? Construímos muito, mas descartamos bem mais. Muito daquilo que classificamos como imprestável faz falta na edificação de outros lares, aqueles que seriam a vida sonhada por muitos. A sobra de uns é migalha essencial a outros.

Não é de desigualdade social nosso assunto. Digamos ser este um ingênuo conto de Natal. Perambulando por nossas avenidas, ruas e vielas é impossível não notar essas caçambas modernas que a civilização inventou para despejar seus descartes. Ironicamente, muitas destas ocupando vagas de idosos, carga e descarga ou mesmo de cadeirantes, deficientes. Outras na contramão do fluxo normal ou simplesmente impedindo acesso à garagem do pobre contribuinte. Tão ou mais irregular que o veículo de placas clonadas, a carroça a tração animal ou humana que nunca respeita leis de trânsito e por aí vai. O pobre catador é quem faz a festa em meio a tanto caos e dejetos.

Um deles, no entanto, num dezembro de entulhos ricos, recicláveis valiosos e descartes preciosos, encontrou um dia uma caixa de papelão atraente e volumosa, com um selo de loja de luxo, mas conteúdo misterioso envolto em fina seda. Que fazia ali aquela caixa? Levou-a cuidadosamente para seu barraco, pensando fazer presente à companheira de infortúnios, a mãe de seus filhos. Depositou a caixa numa mesa de centro, cambeta, porém ainda útil. Reuniu mulher e filhos e, num ritual quase religioso, começou a desembrulhar as peças. Primeiro encontrou uma ovelha, depois outra, mais outra. Logo veio um boi, um cavalo, outro boi, uma vaca leiteira. Ah, que bom se esta fosse realmente leiteira, pensou, olhando para a tristeza desnutrida do caçula no barraco.

Continuou a desvendar os mistérios daquela caixa. Já não atinava para o sentido daquele zoológico de peças, quando encontrou o que seria a imagem de um rei, um rico e portentoso rei da antiguidade, que trazia consigo um precioso baú repleto de moedas de ouro. Logo encontrou outro rei, com traços asiáticos, depois outro, de pele negra. Quem seriam tão estranhas figuras? Mas ao mistério do tríplice reinado, recordando uma trindade quase santa de poder e glória, seguiram-se enigmáticas figuras de pastores e aldeões, gente simples, gente do povo como eles, catadores e sobreviventes das mesas ricas que lhes davam suas sobras, seus entulhos. Gente como a gente, pensou!

Depois descobriu a imagem da simplicidade em pessoa, representando um venerável senhor de tez serena, cajado de apoio a longas caminhadas que certamente já fizera. Seu olhar era de contemplação a algo reluzente. Tinha os traços de um ancião feliz, um zé ninguém sem muitas realizações senão aquelas que evidenciavam a consciência de um homem justo. A esposa do catador foi quem desembrulhou a peça seguinte: bela imagem de uma jovem mulher! A imagem perfeita de u’a mãe amorosa, exclamou em alta voz, enquanto a depositava com extremada devoção e encantamento bem ao centro da mesinha cambeta, calçada agora com a responsabilidade de não destruir aquelas peças dum quase quebra-cabeças que encantava a todos.  A jovem Maria, como tantas marias de lutas e infortúnios que bem conhecia, aquela Maria lhe transmitia força e serenidade nunca sentidas antes. Depositou-a carinhosamente ao lado da imagem apaixonada do seu bom José.

Por fim, restou um último e misterioso embrulho. Em partes descobriram o que poderia ser um comedouro de animais, um cesto de ração ou coisa assim, pois era uma peça totalmente descaracterizada, lembrando vagamente um berço de criança. A surpresa maior veio a seguir: a imagem radiante de um bebê, mas com o nariz quebrado. Teriam que lhe providenciar outro berço. Tal qual fizeram para o caçula da família, adotado sim, mas que num dezembro como este encontraram numa caçamba, tirintando de frio e com o nariz também quebrado. Emanuel era seu nome, o mesmo nome do juiz que concedera ao casal de catadores a guarda daquele menino da caçamba…

WAGNER PEDRO MENEZES
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