O Papa Francisco, ao abrir a Quaresma deste ano, na homilia desta quarta-feira de cinzas, referiu-se às três atitudes propostas pelo Evangelho deste dia dizendo: “nessa viagem de retorno ao essencial “o Evangelho propõe três etapas, que o Senhor pede para percorrer sem hipocrisia nem ficção: a esmola, a oração e o jejum”.
“A esmola, a oração e o jejum nos reconduzem às únicas três realidades que não se dissipam. A oração nos une a Deus; a caridade, ao próximo; o jejum, a nós mesmos. Deus, os irmãos, a minha vida: eis as realidades que não terminam no nada e sobre as quais é preciso investir.”
A Quaresma nos convida a olhar “para o Alto, com a oração”, que liberta de uma vida chata “onde se encontra tempo para si, mas se esquece de Deus”, e depois a olhar “para o outro, com a caridade, que liberta da nulidade do ter, de pensar que as coisas estão bem se para mim tudo vai bem”.
A Quaresma nos convida “a olhar para dentro de nós mesmos, com o jejum, que liberta do apego às coisas, do mundanismo que anestesia o coração. Oração, caridade, jejum: três investimentos num tesouro que dura”.
Abrimos o período quaresmal com uma espiritualidade profunda em que somos convidados a trilhar o caminho da penitência especialmente utilizando o nosso tempo com a oração, o jejum e a esmola.
Neste tempo de tanta carência e necessidade é muito importante repensarmos sobre o papel de dominação e escravidão que os bens e riquezas exercem em nossas vidas. Daí a importância de aprofundarmos a importância da partilha, da caridade ou esmola e o sua consequência em nossas vidas.
Embora possamos sempre compartilhar com os irmãos e irmãs carentes as necessidades momentâneas que nos aparecem diante dos olhos numa sociedade em que as pessoas em situação de rua aumentam ada vez mais, no entanto, somos chamados a ver nesse gesto uma necessidade de conversão dessa idolatria que o mundo de hoje impõe em nossas vidas.
Precisamos sim ajudar aos nossos irmãos nas suas necessidades, a fome não espera, mas “esmola” é muito mais que um assistencialismo; é dar vida, dignidade, tirar o irmão da situação que ele se encontra. Dar algo material é muito mais fácil e cômodo do que dar de si, do seu tempo, das suas capacidades, daquilo que você sabe fazer, e principalmente do amor humano carregado do amor Divino.
Dar esmola significa dar de graça, dar sem interesse de receber de volta, dar sem egoísmo, sem pedir recompensa, em atitude de compaixão. Nisto ele imita o próprio Deus no mistério da criação e a Jesus Cristo, no mistério da Redenção. O homem recebeu tudo do seu criador. Tudo quanto tem, possui-o porque recebeu. Ora, se Deus dá de graça e se o homem é criado à imagem e semelhança de Deus, se Cristo se doou totalmente, dando sua vida, também a pessoa será capaz de dar de graça. Ao descobrir que dentro de si existe a sublime capacidade de doar-se na gratuidade, a exemplo de Deus e de Cristo, brota nele o desejo de celebrá-la.
Quando, pois, na quaresma a Igreja convoca a todos os fiéis a darem esmola, ela comemora aquele que por excelência exerceu a esmola: Jesus Cristo. Convida o homem à atitude de abertura ao próximo, convida-o a servir ao próximo com generosidade e desprendimento. Ora, neste momento a esmola começa a significar toda esta atitude de doação gratuita. Não só de bens materiais, mas o tempo, o interesse, as qualidades, o serviço, o acolhimento, a aceitação. E todo este mistério de abertura e gratuidade em favor do próximo na imitação de Deus e de Cristo possui então uma linguagem ritual. Tem valor de símbolo.
Pela celebração quaresmal com a proposta de dar esmola a Igreja comemora a generosidade de Cristo que deu sua vida pelos seus e torna presente Cristo, dando-se a seus irmãos em cada irmão, formando o seu corpo. Assim, quando a Igreja convida os fiéis a exercerem a esmola durante a Quaresma, sabe muito bem que não é pela esmola em si que ela vai resolver todos os problemas sociais e realizar a promoção humana, mas sabe também que é pelo que a esmola significa que ela vai realizar uma verdadeira promoção humana. Muitas situações de carência de muitos existem exatamente por causa da ganância e do apego aos bens de alguns.
Dessa maneira, não é a quantia que importa, mas o que gesto ou o rito da esmola significa. Exercitando a atitude da esmola durante a quaresma, a Igreja quer levar os cristãos a viverem a atitude da esmola durante todo o ano, durante toda a vida. Descobrimos, então, que no exercício da esmola está contida a atitude de conversão, em relação ao próximo.
O que diz o Catecismo da Igreja Católica: no Batismo, Deus infunde na alma, sem nenhum mérito nosso, as virtudes, que são disposições habituais e firmes para fazer o bem. As virtudes infusas são teologais e morais. As teologais têm como objeto a Deus; as morais têm como objeto os bons atos humanos. As teologais são três: fé, esperança e caridade.
No que diz respeito da virtude teologal da caridade, ou seja, do amor, deve-se ter em conta que o amor a Deus e o amor ao próximo são uma mesma e única coisa, de modo que um depende do outro; por isto, tanto mais poderemos amar ao próximo quanto mais amemos a Deus; e, por sua vez, tanto mais amaremos a Deus quanto mais de verdade amemos ao próximo. (§1822: a caridade é a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas, por si mesmo, e a nosso próximo como a nós mesmos, por amor de Deus; §1823: Jesus fez da caridade o novo mandamento. Amando os seus “até o fim” (Jo 13,1), manifesta o amor do Pai que Ele recebe. Amando-se uns aos outros, os discípulos imitam o amor de Jesus que eles também recebem. Por isso diz Jesus: “Assim como o Pai me amou, também eu vos amei. Permanecei em meu amor” (Jo 15,9). E ainda: “Este é o meu preceito: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12): §1824: Fruto do Espírito e da plenitude da lei, a caridade guarda os mandamentos de Deus e de seu Cristo: “Permanecei em meu amor. Se observais os meus mandamentos, permanecereis no meu amor” (Jo 15,9-10); §1825: Cristo morreu por nosso amor quando éramos ainda “inimigos” (Rm 5,10). O Senhor exige que amemos como Ele, mesmo os nossos inimigos, que nos tornemos o próximo do mais afastado, que amemos como Ele as crianças e os pobres).
O apóstolo S. Paulo traçou um quadro incomparável da caridade: “A caridade é paciente, a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (l Cor 13,4-7).
O Papa Francisco em sua mensagem para a quaresma deste ano também se referiu a essas três práticas recomendadas no evangelho que abre a quaresma: “Jejuar, isto é, aprender a modificar a nossa atitude para com os outros e as criaturas: passar da tentação de «devorar» tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor, que pode preencher o vazio do nosso coração. Orar, para saber renunciar à idolatria e à autossuficiência do nosso eu, e nos declararmos necessitados do Senhor e da sua misericórdia. Dar esmola, para sair da insensatez de viver e acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de assegurarmos um futuro que não nos pertence. E, assim, reencontrar a alegria do projeto que Deus colocou na criação e no nosso coração: o projeto de amá-Lo a Ele, aos nossos irmãos e ao mundo inteiro, encontrando neste amor a verdadeira felicidade. E concluiu: Queridos irmãos e irmãs, a «quaresma» do Filho de Deus consistiu em entrar no deserto da criação para fazê-la voltar a ser aquele jardim da comunhão com Deus que era antes do pecado das origens (cf. Mc 1,12-13; Is 51,3).
Em sua homilia desta quarta-feira de cinzas ele ainda nos faz refletir sobre a nossa mudança de rota e nos pergunta atrás de que nós corremos: “As realidades terrenas dissipam-se como poeira ao vento. Os bens são provisórios, o poder passa, o sucesso declina. A cultura da aparência, hoje dominante e que induz a viver para as coisas que passam, é um grande engano. Pois é como uma fogueira: uma vez apagada, ficam apenas as cinzas”, frisou. O Papa disse ainda que a “Quaresma é o tempo para nos libertarmos da ilusão de viver correndo atrás da poeira. Quaresma é redescobrir que somos feitos para o fogo que arde sempre, não para a cinza que imediatamente desaparece; para Deus, não para o mundo; para a eternidade do Céu, não para o engano da terra; para a liberdade dos filhos, não para a escravidão das coisas. Hoje, podemos nos perguntar: De que parte estou? Vivo para o fogo ou para as cinzas?”
Portanto, eis o grande convite para este tempo quaresmal. Que vivamos intensamente a oração, que cumpramos com o jejum como forma de moldarmos ainda mais o nosso coração a vontade de Deus e que exerçamos a esmola (caridade) como forma de doação do que temos e somos ao serviço daqueles que mais necessitam.
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ