Entendendo a Campanha da Fraternidade

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Material para catequese
Material para catequese

É PERMITIDO FAZER O BEM OU O MAL NA QUARESMA?

A Campanha da Fraternidade é uma iniciativa da Igreja do Brasil que visa despertar no povo cristão, durante o período quaresmal, a sensibilidade perante algum problema social significativo, desses que afetam a população em geral e, em especial, os mais pobres. Sua origem remonta ao ano de 1961, quando alguns sacerdotes que trabalhavam na Cáritas Brasileira planejaram uma arrecadação de recursos cuja finalidade era financiar as atividades assistenciais da instituição. No ano seguinte, na Quaresma, a Arquidiocese de Natal – RN resolveu promover a ação em âmbito diocesano.

Devido ao bom êxito da experiência, outras dioceses foram aderindo à Campanha da Fraternidade, inicialmente no Nordeste e, posteriormente, noutras regiões do país até que a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) resolveu assumi-la como um projeto em que todas as dioceses brasileiras, a seu modo e de acordo com as tradições locais, adotassem a temática proposta como objeto de reflexão e impulsionador de ações transformadoras. A campanha seria, portanto, uma expressão mais pujante da caridade cristã requisitada na Quaresma.

A partir de um certo tempo, a viabilidade (e até a legitimidade) da Campanha da Fraternidade começou a ser questionada por grupos ou pessoas católicas, questionamentos estes que vieram à tona, na sua maioria, através de canais da internet cujos mentores têm bastantes seguidores. As ressalvas dizem respeito à suposição de que a CF desvia os fiéis do mistério cristão celebrado na Quaresma ou, ainda, que a campanha representaria a inserção subjacente de ideologia política na vida cristã ordinária, quiçá como parte de um plano que visa contaminar de marxismo a Igreja. Na esteira dessa visão, a CNBB foi acusada de utilizar a Campanha para arrecadar recursos com os quais estaria financiando instituições de índole duvidosa.

Durante todos esses anos de aplicação da Campanha da Fraternidade, equívocos de várias naturezas provavelmente foram cometidos, incluindo a instrumentalização para fins políticos e ideológicos. Não obstante, as deduções daqueles que a questionam são precipitadas e improcedentes; algumas são até grosseiras e mal-intencionadas. O objetivo maior da CF é estimular o espírito de partilha e de compromisso com problemáticas que não podem ser ignoradas pelos cristãos, sob pena de se estar negligenciando aspectos essenciais da mensagem de Jesus. Temas como doação, corresponsabilidade, reconciliação, vocação, libertação, vida e família fazem parte do núcleo da fé cristã. E problemas sociais como a pobreza e a fome, racismo e exclusão social, desemprego, violência e drogadição, entre outros, lhe diz respeito diretamente.

Praticamente a totalidade das matérias propostas nos temas da Campanha da Fraternidade até 20242 alude à caridade, um dos atos de piedade que são ressaltados na Quaresma.

3 Isso significa que a campanha não se opõe ao tempo quaresmal, mas, pelo contrário, a ele se alinha. A despeito de alguns ornamentos indevidos e de mau gosto que são postos nos espaços celebrativos, músicas às vezes de pouca excelência e discursos impróprios, a afirmação de que a CF está em desacordo com a espiritualidade da Quaresma é infundada.

A meu ver, qualquer tipo de confusão litúrgica eventualmente observada, denota mais a falta de percepção e de criatividade dos agentes, do que um problema da Campanha em si.

O Catecismo da Igreja Católica (n. 1438) adverte que os tempos quaresmais são “particularmente apropriados aos exercícios espirituais, às liturgias penitenciais, (…) às

privações voluntárias como o jejum e a esmola, à partilha fraterna” (grifo meu). Por sua vez, a Sacrosanctum Concilium (n. 109) orienta que a catequese sobre a natureza própria da penitência, deixe também as pessoas a par das consequências sociais do pecado. “A penitência quaresmal – afirma – deve ser também externa e social, não só interna e individual” (SC, 110).

Se a Quaresma é tempo de conversão, ela é também tempo de mudança social. A Campanha da Fraternidade salienta a importância de não separar a piedade do serviço aos irmãos. Ela convida a alargar o conhecimento a respeito do pecado e de seus efeitos, bem como das atitudes a serem tomadas em vista do arrependimento e da reparação. Além disso, a CF se tornou uma expressão de comunhão entre as Igrejas Particulares no Brasil, sinal da colegialidade episcopal e da reunião do povo de Deus em torno de uma ação oriunda da fé comum.

É, no mínimo, curioso, que se considere a Campanha da Fraternidade como danosa e prejudicial. Um famoso youtuber chegou a qualificar a CF 2023 como “a mais perigosa de todas”, alegando que ela conduziria as pessoas a agirem em conformidade com o marxismo, sem saber que estão fazendo isso. Seria, portanto, parte de um plano consciente e bem traçado pela CNBB para adquirir adeptos para a Teologia da Libertação. A suposição é tanto mais frágil quanto se observa que tais consequências supostamente nefastas da Campanha da Fraternidade não são verificáveis.

Desde 1970, que a Campanha da Fraternidade recebe uma mensagem de apoio do Papa. Em 1979, João Paulo II já falava da necessidade de viver a quaresma com ascese pessoal, porém sem esquecer os gestos concretos de amor ao próximo.4 Em 2007, a mensagem de Bento XVI afirmava: “Ao iniciar o itinerário espiritual da Quaresma, a caminho da Páscoa da ressurreição do Senhor, desejo uma vez mais aderir à Campanha da Fraternidade, (…) tempo em que cada cristão é convidado a refletir de modo particular sobre as várias situações sociais do povo brasileiro que requerem maior fraternidade” (grifo meu).

5 O Papa Francisco manteve a tradição de apoiar a iniciativa. É suspeitoso que, depois de sessenta anos da existência de uma campanha promovida por uma conferência episcopal, do incentivo e aprovação de pessoas tão qualificadas, só agora tenha surgido – como parece que alguns nos querem fazer crer – gente com inteligência suficiente para detectar a sua suposta nocividade.

O povo cristão deve olhar com prudência e até com desconfiança para aquilo que está sendo apresentado na internet, geralmente através de discursos muito bem articulados e convincentes, mas cheios de incongruências quando avaliados com profundidade e nas entrelinhas. A crítica radical à Campanha da Fraternidade pode ser mais uma faceta da ampla oposição que alguns grupos fazem à CNBB, ao Concílio Vaticano II e ao diálogo com o mundo moderno. Essa resistência à modernidade é histórica, sendo empreendida pelo própria Santa Sé até meados do século passado, largamente superada pelas decisões conciliares, mas recuperada e disseminada hodiernamente por tais grupos.

A Campanha da Fraternidade não é um dogma nem um preceito indelével. Seria razoável admitir, inclusive, maior ou menor adesão das pessoas às suas propostas. A iniciativa pode ser questionada, revista, alterada. Entretanto, o bom senso diz que isso poderia ser feito com discernimento e em espírito de comunhão. A denúncia pública dos seus possíveis equívocos em nada contribui para a unidade eclesial e muito menos para a boa formação do povo de Deus; pelo contrário, causa a impressão de que eventuais erros são tão graves e importantes, que merecem maior atenção do que o mistério de Cristo. O contexto acaba por induzir a questionar se a intenção de quem denuncia é o bem da Igreja ou a viralização de vídeos monetizados. Ainda que alguns acontecimentos inspirem preocupação, é falso o que deles se infere, a saber: que a Campanha da Fraternidade é um mal.

Quando me questionei sobre essas coisas, escutando – como gosto de fazer – diversas versões e opiniões, eu fui rezar, para tentar ouvir a Deus sobre o assunto. Durante a oração, ressoou em meu pensamento esta palavra de Jesus: “O que nos é permitido fazer no sábado: o bem ou o mal? Salvar vidas ou matar as pessoas?” (Mt 12, 12). Ora, a Campanha da Fraternidade promove o bem. Por que não seria lícito realizá-la no período quaresmal? Afinal, é permitido ou não fazer o bem na Quaresma? Indubitavelmente, o tempo litúrgico é maior do que a Campanha. Mas ambos foram feitos para nós e não nós para eles (cf. Mc 2, 27).

Por: Ronaldo José de Sousa

1 Missionário católico, cofundador da Comunidade Remidos no Senhor, Doutor em Ciências Sociais pela UFCG.

2 É possível encontrar todos esses temas no site da Cáritas de Londrina: https://caritaslondrina.com.br/.

3 Na Quaresma, a Igreja costuma evidenciar a escuta mais frequente da Palavra de Deus, a oração prolongada, o jejum e as obras de caridade (cf. SC 109-110).

4 Cf. https://campanhas.cnbb.org.br. Consulta em 05 de fevereiro de 2024.

5 Cf. Ibid.