Na perspectiva de mais uma guerra eis que o Papa surpreende o mundo com uma exortação à santidade. Sua última carta apostólica, intitulada “Alegrai-vos e exultai”, parece mais uma voz a clamar num deserto de contradições, num atoleiro de decepções, num lago lodoso e fétido onde a humanidade põe a cara. Chamar o mundo à santidade, num momento tão crítico, é de fato clamar às paredes. Além da utopia, eis que o apelo do santo padre ganha sentido ao buscar esse brado divino nas páginas da história bíblica, por conseguinte, humana e meritoriamente pecadora, por suas ações contrárias ao projeto divino.
Os santos estão aí, “aos pés da porta”, inseridos nessa realidade caótica que sempre escrevemos. Lembra-nos que “o Senhor, na história da salvação, salvou um povo. Não há identidade plena, sem pertença a um povo. Por isso, ninguém se salva sozinho” (6) e acrescenta: “Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir” (7). Papa Francisco é capaz de identificar santos na multidão célere e aparentemente insensível do homem contemporâneo, onde o cada um pra si domina seu extrato social. Afirma com todas as letras: “A santidade é o rosto belo da Igreja. Mas, mesmo fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes, o Espírito suscita sinais da sua presença, que ajudam os próprios discípulos de Cristo” (9). Ou seja, santidade não é faculdade única e exclusiva dos crentes católicos. É valor humano.
Não é exclusividade eclesiástica (bispos, padres e freiras), mas vocação de todos “os de boa vontade”. “Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração” (14). Ao contrário, lembra o papa “todos somos chamados”, consagrados, casados, trabalhador, progenitor, autoridades… Sê santo, apela Francisco, lembrando ainda que em outras palavras a santidade é “uma forma mais perfeita de viver o que já fazemos” (17). Na perspectiva cristã, é viver “tudo o que Cristo viveu. Ele próprio faz com que o possamos viver n’Ele e Ele vivê-lo em nós” (20). Exige somente sintonia com sua vontade. “Pede sempre, ao Espirito Santo, o que espera Jesus de ti em cada momento da tua vida e em cada opção que tenhas de tomar” (23).
Como vemos, não há perfeição sem que se busque um modelo. No cristianismo temos essa personificação em Cristo Jesus. Então: “o desafio é viver de tal forma a própria doação, que os esforços tenham um sentido evangélico e nos identifiquem cada vez mais com Jesus Cristo” (28). Pois onde quer que se encontre um pouco de boa vontade e disposição ao amor, à fraternidade, à justiça e à solidariedade entre humanos, encontra-se o Cristo e sua Igreja, mesmo que atuando de forma velada. “Então, como não reconhecer que precisamos de deter essa corrida febril para recuperar um espaço pessoal, às vezes doloroso mas sempre fecundo, onde se realize o diálogo sincero com Deus?” (29). A corrida maior na vida moderna é a busca incessante que o homem faz de si próprio. O grito de Paz não é um apelo às instâncias celestiais?
O chamado à santidade nos faz “mais vivos, mais humanos”. É um apelo à vida. “Não tenhas medo da santidade. Não te tirará forças, nem vida nem alegria” (32). Há nesse chamado um grito à sensatez, um apelo à coerência, em especial dos que se dizem cristãos. “Cada cristão, quanto mais se santifica, tanto mais fecundo se torna para o mundo” (33). Essa é a força transformadora capaz de devolver à humanidade um pouco de seu senso de responsabilidade com a vida, a dignidade, a paz que nos falta. Isso tudo é apenas um preâmbulo, a introdução de um documento assaz oportuno nos dias de hoje. Impossível? Veremos mais na segunda parte. Por enquanto o papa ainda teima: “Não tenhas medo de apontar para mais alto, de te deixares amar e libertar por Deus” (34).