A intimidade com Deus acontece por meio da oração e reflexão
A confissão restabelece a graça de Deus em nós, mas as raízes e consequências dos pecados na nossa alma ainda prejudicam o desenvolvimento da vida espiritual.
Já vimos como se estabeleceu a ciência dos santos ou teologia ascético-mística, e como ela nos fornece um verdadeiro mapa do caminho para realizarmos o desejo de Deus que nos diz: “Sede santos, como eu seu pai dos céus é santos” (Mt 5,48), e “se alguém me ama, guardará a minha palavra e meu pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada” (Jo 14,23).
Também vimos que os Santos Doutores da Igreja responderam com simplicidade à pergunta: onde está Deus? E o grande risco que enfrentamos é, em vez de partirmos ao Seu encontro, ficarmos ofendidos com a simplicidade da resposta, como o general Naamã (2 Rs 5,11-12), e querer procurar Deus em outro lugar. Como os servos do general, pergunte-se por que não ir ao encontro d’Ele? Se fosse algo muito difícil, faríamos, mas porque é fácil e próximo, não queremos fazer (2Rs 5,13)?
Santa Teresa de Jesus deixa claro que esse caminho de aproximação e intimidade com Deus é a oração e a reflexão (Castelo Interior – Primeiras Moradas 1,7). Assim, para entrar e permanecer nesse caminho ou castelo interior da alma, precisamos nos manter livres do pecado mortal e crescer na vida de oração. Assim, os batizados que, por meio da confissão, tiveram seus pecados perdoados estão em “estado de graça” ou, sob a influência da Graça Santificante, que “é um dom criado que Deus se digna conceder à alma do justo, a fim de o tornar filho adotivo de Deus (1 Jo 3,1-3). Por esse dom, o homem vem a ser realmente consorte da natureza divina (2 Pe 1,4), templo do Espírito Santo (1 Cor 3, 16) ou da Santíssima Trindade (Jo 14, 23). Pode-se dizer que a graça santificante é um hábito ou uma veste que recobre a substância da alma, dando-lhe uma entidade nova, um ser sobrenatural.” Dom Estevão Bettencourt, OSB.
Bem-vindo às primeiras moradas
De início, as notícias são excelentes: aqueles que permanecem em estado de graça estão livres do inferno e tem o seu lugar garantido no céu (Catecismo da Igreja Católica 1020-1032). Além de não ser pouca coisa, isso ainda nos faz participantes do corpo de Cristo e demonstra que o sacrifício d’Ele por nós não foi em vão. Desse modo, realizamos em nós todo o projeto de salvação que a Santíssima Trindade pensou e executou durante os séculos. Todo? Sim e não.
Sim, porque Cristo veio restabelecer a ordem perdida com o pecado original, e quando renunciamos ao pecado e aderimos a ele, religamos em nós o que estava desligado: nossa capacidade de nos unir a Deus na eternidade.
Não, porque todo o projeto de Deus para nós é muito maior do que somente a libertação do pecado. Por isso, São Paulo nos diz que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rom 5,20), deixando claro que a encarnação do Cristo não só restitui o que tínhamos perdido, mas concedeu muito mais: uma vida de intimidade plena com Deus (Suma Teológica I,II-Q2A8).
Santo Tomás explica que, assim como Deus estabeleceu um projeto de salvação na história, ele repete esse projeto na alma de cada um através das missões divinas (ST I-Q43A3). Desse modo, assim como o Pai preparou um povo para a vinda do Filho, ele nos prepara para receber Jesus Cristo em nossa vida, atraindo-nos (Jo 6,44). Essa preparação se dá nas primeiras moradas.
Na prática, a vida espiritual, nas primeiras moradas, resume-se a trabalharmos com afinco para retirar tudo que ainda atrapalhe a graça de Deus atuar em nós enquanto nos aprofundamos na oração. Lembra que a primeira parte do caminho espiritual é ascético (trabalhoso, com esforço)? É por isso que essas primeiras moradas são conhecidas também como Via Purgativa ou Dia do Temor. Devemos “purgar”, purificar, eliminar todos os resquícios da vida velha e do homem velho em nós para podermos prosseguir. Também devemos crescer, por meio da oração, no verdadeiro temor a Deus, que é o início da Sabedoria (Pr 9,10 e Sl 110,10).
Os Santos Padres dos primeiros séculos identificam esse período de purificação com os 40 anos que o povo de Israel passou no deserto. No Êxodo, vemos que, pouco tempo depois de sair do Egito, eles chegaram à Terra Prometida, mas tiveram receio de entrar (Nm 13,28) . Foi para se purificar da desobediência a Deus que eles vagaram quarenta anos pelo deserto antes de poder retornar à Terra Prometida (Nm 14,32-34).
Ouvir a voz de Deus
São João da Cruz explica esse período das primeiras moradas com a visão que teve o profeta Ezequiel (Subida IX). Ao entrarmos no castelo interior, ainda levamos junto toda espécie de répteis e animais imundos (Ez 8,10). Embora “confessados”, nossas paixões continuam a nos dominar e nossos desejos descontrolados ainda nos corrompem. Por um lado, eles nos impedem de ouvir a voz de Deus, sujando e povoando o castelo com coisas que nos distraem e, fatalmente, levando-nos ao pecado mortal, que nos retirará da caminhada mais uma vez.
Depois, o profeta vê os 70 anciãos da casa de Israel, que oferecem incenso aos ídolos pintados nas paredes (Ez 8,11-12). O santo explica que é a corrupção que criamos dentro do espaço sagrado da nossa alma: cultivamos, até aqui, toda a perfeição dos vícios (os sete pecados capitais vezes 10, que é o número da totalidade) e continuamos adorando aos “deusinhos” que criamos em nós. Não é verdade que idolatramos o dinheiro, o status social, a opinião dos outros, os objetos materiais, nossa saúde física, o “tempo livre” etc.? Como os anciãos da visão, acreditamos que Deus não nos vê, e permanecemos cultivando “pecados secretos” no coração. Se eles não chegam a ser pecados mortais, que nos expulsam da vida espiritual, sujam e atrapalham, impedindo nosso progresso. Permanece-se enroscado nas primeiras moradas.
Aos que se perguntam por que sua vida espiritual não vai para frente, mesmo evitando o pecado mortal, temos, então, uma resposta: é a inconsistência na oração, aliada aos desejos materiais e as paixões sem controle (répteis e animais imundos), as raízes de vícios e pecados (setenta anciãos), nossa idolatria por tudo que não é Deus (ídolos pintados nas paredes de nossa alma), enquanto permanecemos ocultando do Senhor nossos desejos mais profundos (anciãos na obscuridade).
Por tudo isso, Santa Teresa de Jesus diz que, nas primeiras moradas, trazemos ainda a sujeira de fora do castelo para dentro (Castelo Interior – PM 1,8). É preciso limpar a casa. Se o castelo interior é de um puríssimo cristal, deveríamos ver o Senhor do castelo que habita na sétima morada, mesmo ela estando distante. Infelizmente, a sujeira interior tirou a transparência do cristal e também nos impede de ouvir a voz de Deus que fala conosco. Nas primeiras moradas, embora tenhamos iniciado o percurso de santidade, somos como cegos e surdos à graça de Deus que já está presente.
Ouço uma voz vindo da montanha
Ouço cada dia melhor
Ouço uma voz vindo da montanha
E eis uma voz a clamar:
Preparai o Caminho
Preparai o Caminho do Senhor!
Flávio Crepaldi
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